domingo, 5 de agosto de 2012

Comunidade – a unidade ilusória


Kenneth L. Schmitz

O texto discorre sobre o equívoco de se pensar a comunidade ora como uma “coletividade de indivíduos” sejam esses ligados externamente (constituindo um grande Indivíduo, p. ex.: uma comuna, um partido político), sejam internamente (intersubjetivamente, p. ex.: as amizades). Tal identificação pode levar a crer que a comunidade possui um sujeito, e que esse sujeito é os próprios indivíduos (sujeito coletivo: o nós) quando, na verdade, a comunidade é o seu próprio sujeito (impessoal). Para Schmitz, comunidade se define mais como um princípio de realização do humano (enteléquia), portanto anterior ao indivíduo, do que algo resultante de suas interações. (Daí a necessidade de se separar indivíduo de comunidade). A inspiração aqui é Aristóteles e seus conceitos de tóde ti (“algo de um certo tipo”) e enteléquia (“ter um fim em si mesmo”).
O objetivo do autor é observar o papel que as instituições sociais (agrupamentos sociais legitimados, formados pela projeção da vontade individual) desempenham na sociedade, assegurando a estabilidade e o desenvolvimento humano. Tais instituições são realizações do princípio comunal no Homem – princípio esse que é inerente a todos os seres vivo, segundo Aristóteles (espécie). [Comunidade ≠ Instituição social] Comunidade é, portanto, algo como uma humanidade virtual (potencial) pronta para ser efetuada em cada indivíduo. Não se confunde com instituição social que é apenas a sua efetuação histórica, determinação de uma coletividade de indivíduos.

*** Os indivíduos tornam-se Homens (ou seja, gozam de uma humanidade, uma “participação” na espécie humana) quando se comunizam (“diferenciam-se” na comunidade). Apenas na comunidade, segundo Aristóteles (Apud Schmitz), o indivíduo cumpre seu destino histórico (ser Homem).

*** As instituições realizam uma espécie de destino histórico-comunal do Homem. [1]

*** Conceitos importantes:
a) tóde tì e enteléquia (Aristóteles);
b) Princípio comunal: ser um tipo (um exemplar) dentro de uma categoria (espécie).
c) Comunalidade: comunidade como potência.

*** Citações ***

[...] uma comunidade não é, meramente, a reciprocidade de indivíduos, sem suas relações recíprocas externas ou internas, pois os indivíduos não constroem uma comunidade por causa de suas relações individuais uns com os outros. Tais relações compreendem uma coletividade. A natureza e a realidade da comunidade não devem ser identificadas simplesmente com as relações interpessoais, porque o sujeito da comunidade não são os indivíduos que mantêm essas relações, e nem suas experiências mútuas. O sujeito da comunidade, o referente da palavra, é somente a própria comunidade; ou antes, estritamente falando, não há nenhum sujeito comum da comunidade, simplesmente porque a comunidade é, em si, um certo tipo de sujeito.
Se a comunidade é ela mesma um tipo de sujeito, ainda assim não deve ser inflada em um grande indivíduo, colocado acima, abaixo ou junto à rede de indivíduos. Se a comunidade não é um conjunto de inter-relações, não é, também, um tipo especial de entidade: um individuum publicum.
O conceito, no caso, lembra ‘o povo’; a ‘nação’, ‘o Estado’, e pode, é claro, ser utilizado de forma correta e honesta, mas algumas vezes, oculta uma inchação indevida. A forma mais extrema encontra-se no absolutismo do Estado totalitário; mas quando a democracia de massa é colocada sob pressão, ela também pode oscilar entre apelar, por um lado, para a coletividade de indivíduos e por outro, para uma vaga entidade pública, tal como ‘o interesse público’, ‘defesa nacional’ ou ‘política estatal’.
É digno de nota, além disso, que, enquanto a redução à intersubjetividade identifica a comunidade com a coletividade de indivíduos internamente relacionados, a redução a uma coleção externa oscila entre tomar a comunidade para ser a coleção de indivíduos e tomá-la como Indivíduo coletivo (p. 181-182).


Diz-se, algumas vezes, que Hegel identificava a comunidade, o Volk e o Estado com um tipo de grande Indivíduo, um tipo de pessoa pública soberana (Der absolute Geist), mas isso, certamente, não é correto. Há uma diferença avassaladora entre o pensamento de Hobbes e o de Rousseau, por um lado, em que a individualidade empresta sua forma a todas as representações concretas, e Hegel, por outro, que articulou uma forma mais complexa de pensamento que incluía o indivíduo e o universal na realidade concreta. De qualquer forma – ou pelo menos assim me parece –, desde o Parmênides de Platão e os lógicos medievais que debatiam o estatuto dos universais, ficou claro, em princípio, que a comunidade (que é, em algum sentido, uma espécie de ‘universal’) não pode ser um indivíduo com letra maiúscula. Então, em ambas as reduções – à coletividade externa e interna –, bem como a inflação do Indivíduo coletivo, são ilusões da comunidade, porque a identificam com um de seus constituintes, a saber, a individualidade. A identificação surge quando o pensamento adota a forma abstrata de racionalidade que identifica cada coisa concreta como um indivíduo (p. 182).


Por sua própria natureza, a comunidade atrai para si a autoridade, o poder e a devoção. O patriotismo é ainda uma virtude poderosa, e o nacionalismo uma causa que não hesita em pedir ao indivíduo que sacrifique a própria vida em seu favor. Há uma profunda – e como em todos os assuntos profundos – e perigosa sabedoria nessa atração, pois o indivíduo é em si mesmo incompleto, e essas realidades comunais, sociais e políticas lhe oferecem uma completude, ou, antes, é mais verdadeiro dizer que elas já nutriram o indivíduo tal como as mães o fizeram (p. 182).


Não é necessário ser platônico (supostamente afirmando a realidade separada dos universais), nem kantiano (afirmando a subjetividade transcendental de certas formas universais, como as categorias), para sustentar o apriorismo da comunidade. O padrão Aristóteles contrasta com o padrão Platão e defende a primazia do indivíduo; mas o que é o indivíduo aristotélico? Aristóteles o chama de tóde ti, ‘esse algo de um certo tipo’, E porque o indivíduo aristotélico é sempre de uma determinada forma, há, no indivíduo, o que se poderia chamar de latitude transatômica, uma generosidade ontológica, a saber, a forma substancial que, no homem, é o princípio racional da completude, a enteléquia. Então, é sobre essa natureza formal, com sua inerente socialidade, que Aristóteles constrói a polis. O princípio da forma humana residente nos indivíduos aristotélicos, portanto, é o próprio solo da comunidade. Tal natureza, entretanto, não é uma mera abstração mental para classificar ou definir os homens individuais, é, antes, o princípio real de não-restrição do indivíduo e de sua individualidade. É o solo real para a própria realidade daquela partilha ontológica que é a raiz e o tráfego da comunidade.
Voltei a Aristóteles por suas razões. Primeiro, porque acho sua caracterização inicial do ser humano sempre frutuosa. Mas muito mais que isso, com sua ajuda, quero insistir que não é necessário conferir uma existência separada aos universais para defender uma certa prioridade da comunidade sobre o indivíduo, ou defender o tipo abrangente de universalidade que transcende o indivíduo na ordem concreta. Pois a comunalidade pertence ao homem individual como parte de sua constituição ontológica. Dentre as causas que fizeram surgir a comunidade, a comunalidade – isto é, o potencial de comunidade – é anterior à realidade da comunidade (p. 183).


Sobre o princípio comunal (TÌ) = (nada-em-comum)
[...] o princípio comunal tem a forma de uma certa ‘inexistência’, uma potencialidade, uma possibilidade real. Pois há algo fora de alcance nos seres humanos individuais que não se baseia em uma individualidade já completada; e isso é sua incompletude ontológica radical. Essa incompletude pertence à própria natureza do homem, não simplesmente na medida em que ele é individualizado, mas além disso; de forma que a própria natureza do homem é, ela mesma, radicalmente incompleta. Juntamente com sua participação com outros seres humanos na sociedade, essa incompletude pode ser remediada por um chamado religioso à transcendência; mas ela é preenchida, ao menos em parte, também através da dependência do alcance e da escala da natureza. A comunidade pode incorporar tanto as estratégias religiosas e naturais de completude, mediando entre elas e tomando forma de acordo com o modelo especificamente humano que medeia a incompletude ontológica radical do homem. A comunalidade é concomitante com o indivíduo humano porque o indivíduo não pode ser humano sem ela, mas antecede o indivíduo porque é um princípio constitutivo: tóde tì. Junto com o desenvolvimento genético e psicológico, o indivíduo humano precisa de reconhecimento da própria incompletude radical para poder alcançar o ambiente social que o rodeia. Mas isso que está além do alcance já está constituído como o princípio comunal (). A especificidade do princípio comunal, sua universalidade, é encontrada em todos os seres naturais; é o seu caráter de espécie, seu tipo. No homem, entretanto, essa especificidade é o que Aristóteles chamou de princípio racional, e o que os antropólogos descrevem em termos de capacidade de linguagem, tecnologia, arte e religião. A prioridade da comunidade é um factum antropológico que fornece ao indivíduo uma agenda de realização de uma humanidade mais completa. O ambiente social não apenas o rodeia, mas o espera.
Se o caráter potencial do princípio comunal nos levou a chamá-lo de ‘inexistência’, essa designação, contudo, não deve ser mal entendida. Pois, como princípio constitutivo de um indivíduo existente, o princípio comunal no indivíduo é tão real quanto qualquer outro fator que ‘constitua’ esse indivíduo. A comunalidade é ‘inexistente’, na medida em que é potencial, mas não no sentido de que é uma mera abstração mental. No indivíduo a enteléquia é a forma radical concreta de incompletude ontológica, e sua concretude é passível de ser menosprezada pelas teorias usuais do significado (p. 184-185)


Segundo Aristóteles, então, a unidade ontológica primária é ‘isso (algo) de um certo tipo’ (tóde tì). Quando esse ‘tipo’ é a humanidade, a segunda parte da fórmula () inclui o princípio comunal. Isso quer dizer: sendo animal e racional, o homem precisa da completude através da socialidade com os modelos de linguagem e ação. Assim, o princípio comunal, em sua colocação ontológica, não é nem um universal abstrato nem um particular abstrato; nem é simplesmente individual. É um modo distintivo de realidade que demanda um modo distintivo de pensamento e análise. O que existe enquanto humano, então, não é nem particular nem universal (já que estes são produtos da abstração), mas antes: indivíduos-enquanto-comunais. De forma que a pluralidade biológica dos seres humanos (a espécie) alcance, através de sua energia inerente, as pluralidades sociais dos grupos humanos (comunidade) (p. 185).


Nos termos de Hegel, as instituições são as autodeterminações de uma comunidade (p. 186).


Se a caracterização de Aristóteles da unidade ontológica é correta, então tanto a particularidade quanto a universalidade são abstrações. O que existe não é nem o particular nem o universal, mas os indivíduos-enquanto-comunais. A tarefa ontológica da instituição, então, é realizar em um determinado modo o princípio comunal; de forma que a instituição seja necessária – não para assegurar a própria comunidade, como se esta fosse algo um tanto separado dos indivíduos – mas para assegurar o bem comum dos indivíduos. Pois o bem dos indivíduos inclui o bem comunal, a completude racional nas e através das instituições determinadas que articulam a comunidade duradoura e ambiental na qual os indivíduos vivem sua vida.
Tais reflexões quanto à unidade ilusória que constitui a comunidade desembocaram nas seguintes conclusões: a de que o indivíduo, entendido como tóde tì, é a raiz da comunidade, e a de que o princípio comunal (tì qua humano) percebe a si mesmo – não primariamente como uma coleção de indivíduos –, mas antes, como a unidade de instituições reais, determinadas. Desde que esse princípio comunal está aberto a tornar-se realidade sob condições históricas e contingenciais, a unidade das instituições estará sujeita a tais condições também. De fato, os indivíduos e suas comunidades e instituições estará sujeita a tais condições também. De fato, os indivíduos e suas comunidades e instituições serão inteiramente históricos, mas a historicidade estará ancorada na constituição ontológica dos indivíduos-enquanto-comunais.
Por tal razão, mesmo que a comunidade esteja profundamente enraizada na natureza humana, a percepção da comunidade nunca estará assegurada. Pois, além de estar sujeita às vicissitudes das forças naturais, a comunidade precisa ser desenhada através de seus agenciamentos históricos – sociais, culturais e técnicos (p. 187-188).


[...] as formas comunais são remédios para a radical incompletude da natureza humana, então cada forma social que morre demonstra, desse modo, sua própria incompletude, também [...] A saúde social em nível ótimo requer tanto estabilidade social quanto mudança social (para não mencionar um certo grau de mera novidade); e isso requer uma forma social que possua legitimidade em si mesma, para que possa trazer à tona a conformidade e também ser capaz de legar legitimidade à sucessora (p. 189).


[1] “A tarefa ontológica da instituição, então, é realizar em um determinado modo o princípio comunal; de forma que a instituição seja necessária – não para assegurar a própria comunidade, como se esta fosse algo um tanto separado dos indivíduos – mas para assegurar o bem comum dos indivíduos” (p. 187-188).

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Projeto comunidade silenciosa


O trabalho divide-se em três partes: a) Crítica do conceito de comunidade; b) Ontologia da comunidade e; c) Comunidade e experiência.
Objetivos:
1)      Genealogizar o conceito de comunidade no campo da Comunicação, tentar compreender sua dispersão semântica e os agenciamentos que o nome comunidade produz em setores da pesquisa comunicacional como a comunicação comunitária e a cibercultura;
2)      Apresentar as duas matrizes semânticas do conceito: a substancialista/transcendente (romântica) e a des-substancialista/imanente;
3)      Apresentar casos (experiências) que ilustram a comunidade como fenômeno estético (acontecimento).

Dispersão & Agenciamentos:
Na Europa, comunidade evoca experiências aterradoras como o nazismo e o comunismo, na parte oriental, aos fundamentalismos religiosos. No Brasil, o conceito foi introduzido pelas Ciências Sociais para se referir à massa imigrante que até meados do século XX eram culturalmente bem definidas. Na Comunicação, em especial, no setor da comunicação comunitária, comunidade é sinônimo de favela, grupos subalterno excluído das benesses da civilização, sendo quase uma blasfêmia chamar um condomínio de luxo de comunidade. No setor da cibercultura, comunidade é sinônimo de rede social, sendo os casos mais famosos o Orkut e, mais recentemente, o Facebook e o tweetter...

A matriz conceitual substancialista/transcendente:
Na comunicação comunitária a matriz é gramsciana, a comunidade comporia um “bloquinho” dentro de um bloco maior (Bloco Histórico), no interior do qual se construiria uma contra-hegemonia a partir de práticas culturais e educativas. Na cibercultura, distinguimos, ao menos 3 autores: Max Weber, Émile Durkheim e Georg Simmel.
Em Weber, o conceito aparece no seu estudo sobre a solidariedade social, no qual o autor distingue a comunidade da sociação. A comunidade, diz Weber, se baseia no sentimento subjetivo. Já a sociação se baseia no cálculo racional; trata-se de um laço motivado por algum interesse.
Em Durkheim, o conceito aparece também num estudo sobre a solidariedade social (cito aqui, em particular a obra “Da divisão do trabalho social”). Durkheim distingue dois tipos de solidariedade, a mecânica e a orgânica. A primeira estaria presente nas formas sociais da Idade Média, a exemplo das famílias clânicas, tribos etc; onde a tradição e o patriarcado exercem um papel fundamental (partilha simbólica). A segunda, por sua vez, possui um caráter funcional; provém da divisão do trabalho social, a partir da articulação de homens livres. Esta solidariedade é aquela que encontramos entre patrão e empregado ou entre comprador e vendedor ou mesmo entre professor e aluno, um tipo de relação voltado à produção de bens (materiais ou não).
Finalmente, em Simmel, a comunidade aparece em seus estudos sobre a micro-sociologia. Para Simmel, a sociedade nada mais é do que uma “comunidade alargada”; se queremos compreender a sociedade é fundamental compreender desde seus pequenos mecanismos... O pressuposto de Simmel, contudo, baseia em parte no “romantismo” próprio da época. O qual incidirá também sobre Weber e Durkheim encontrando sua máxima expressão em Ferdinand Tönnies: de que teria havido uma mudança nas relações sociais na passagem das sociedades tradicionais para a sociedade moderna.
Neste panorama, destaco ainda Michel Maffesoli. Este retomará tanto SImmel, quanto Durkheim e Weber para argumentar o fim da sociedade, das formas societais (fim já anunciado por Jean Baudrillard nos anos 80) e a emergência das “tribos”... Maffesoli, contudo, não faz qualquer distinção entre comunidade, grupos social, tribo ou associação sendo, em muitos casos, tomados como sinônimos. [1]
Este é o conjunto semântico da comunidade que a Comunicação hoje se vale para realizar suas pesquisas. [2]

A substância/entidade aristotélica e o grande problema da comunidade como coisa:
Mas estes conceitos ancoram-se numa perspectiva transcendental e substancialista. Em todos estes autores (Gramsci, Weber, Tönnies, Durkheim e Simmel – exceto talvez em Maffesoli), comunidade é o compartilhamento de uma substância comum. O problema é que este comum substanciado legitima formas de apropriação do comum (bens comuns tais como território, língua, cultura, etnia, eleitores etc.), tornando-se alvo de disputas políticas. Em “Comunidades Imaginadas”, Benedict Anderson vê a constituição de uma comunidade/identidade “supostamente européia” como efeito de um jogo político motivado por um comum (território) que é objeto de cobiça. Esta lógica não é alheia às rádios e TVs comunitárias, conforme aponta muitos estudos sobre sua prática e funcionamento interno: concessões para operar tal serviço são dadas com base num suposto comum que, posteriormente, torna-se legitimador do poder que se constitui em seu nome. Em ambos os casos, comunidade é objeto de interesse tendo sempre alguém para falar (ou reivindicar algo) em seu nome, mesmo que para isso tenha que excluir tantos outros da comunidade.
Ademais, a noção substancialista da comunidade agencia outras questões no campo comunicacional. Questões como sociabilidade, dificilmente tem lugar num tradicional setor de pesquisa como a Comunicação Comunitária. Esta, dá preferência às políticas de comunicação, ao resgate da cidadania, à des-alienação de grupos marginalizados etc. Na cibercultura, por sua vez, embora a sociabilidade seja um objeto premente, é nítido a “substancia” comunitária presente no diversos interesses (políticos ou pessoais voltados ao consumo ou a processos de subjetivação) que motivam a formação de grupos. Além disso, neste setor, não existe diferenciação entre o que é comunidade, associação ou mesmo rede social, já que todas estas expressões dizem respeito à apropriação de uma substancia comum.

O que é, afinal, comunidade?
Um dos objetivos deste projeto é definir o que é comunidade.  Tal definição supõe restrição semântica (de modo a permitir o seu entendimento como aquilo que é diferente às outras formas sociais: associação, tribo, rede social etc.), mas também ampliação (possibilidade de observar a comunidade para além da substancia comum [território, língua, cultura etc.], como aquilo que vivifica [anima] as formações, não aquilo que fica [petrifica], como aquilo que destrói [põe em risco] as totalizações feitas em seu nome; movimento de dupla face: retraimento e expansão, acolhimento e explosão). Neste caso, poderíamos até nos perguntar: o que a tradição romântica (de Rousseau a Tönnies) nominou comunidade (o corpo comunal, fusional etc) é, de fato, comunidade?

Os Filósofos da Comunidade – Bataille, Nancy, Blanchot, Derrida, Agamben e Espósito
O grande passo para a des-substancialização da comunidade foi dado por Georges Bataille. Sua célebre expressão “a comunidade dos que não tem comunidade” serviu de referência para toda uma geração de pensadores que imanentizaram a comunidade. A comunidade de Bataille é uma comunidade negativa (no sentido foucaultiano, a afirmação de um não-positivo), desmotivada, indiferente e sem interesse; é composta por homens que se recusam pertencerem a um corpo coletivo ou a qualquer soberania que “fale por eles”, a qualquer fundação ou enraizamento. É, como diz Giorgio Agamben, “a recusa de toda comunidade positiva fundada sobre a realização ou a participação de um pressuposto comum”.
Jean-Luc Nancy e Maurice Blanchot seguiram as trilhas de Bataille. Ambos influenciados pelo clima de incerteza dos anos 80/90 (fim do socialismo europeu e a emergência de uma sociedade globalizada), assim como o anjo da História de Paul Klee, sendo arrastados por tais acontecimentos, caminhavam para o futuro olhando para a experiência da comunidade (do viver junto) presente em projetos como o comunismo e o fascismo (formas totalitárias que excluíam a diferença, a alteridade, chegando ao absurdo de exterminá-la). 
A imanência da comunidade é a possibilidade de pensá-la como produto de forças, relação deleuziana como resultado de intensidades, velocidades e afetação do caos. Vivemos neste caos só não o compreendemos assim. Este jogo de forças, de relações de forças, decorre a partir de um chamado do fora que nos faz lembrar do fato de que somos entes esvaziados. Não há em nós, de fato, uma alma ou um espírito prestes a se completar, mas um vazio que se desloca incessantemente. A completude do vazio é como a morte por petrificação – eis a ontologia.
É este o apelo de Nancy e Blanchot conforme suas críticas sobre as formas sociais fundadas no enraizamento, na identidade, nos laços fortes (sanguíneos e territoriais) por detrás de projetos como Auschwitz. Contra isso, é preciso fugir das totalizações ou a transcendência da comunidade. Advém daí o Outrem (Lèvinas) e o cuidado com o Outro.
Por isso, Giorgio Agamben, diz haver comunidade na “potentia passiva”. Esta é a morte do sujeito, enquanto instância de subjetivação, ele é dono de si. Porém, na comunidade, somos obrigados à ela, devemos algo a ela. Comunidade (do latim communitas, communus), como reitera Roberto Espósito, é dívida, ônus, tributo (munus) que se para ao Outro.


[1] Esta distinção, como veremos adiante, é de suma importância, e a faremos no momento oportuno.
[2] Com certa predominância da noção gramsciana de comunidade como grupo contra-hegemônico.