Kenneth L. Schmitz
O
texto discorre sobre o equívoco de se pensar a comunidade ora como uma
“coletividade de indivíduos” sejam esses ligados externamente (constituindo um
grande Indivíduo, p. ex.: uma comuna, um partido político), sejam internamente
(intersubjetivamente, p. ex.: as amizades). Tal identificação pode levar a crer
que a comunidade possui um sujeito, e que esse sujeito é os próprios indivíduos
(sujeito coletivo: o nós) quando, na verdade, a comunidade é o seu próprio
sujeito (impessoal). Para Schmitz, comunidade se define mais como um princípio
de realização do humano (enteléquia), portanto anterior ao indivíduo, do que
algo resultante de suas interações. (Daí a necessidade de se separar indivíduo
de comunidade). A inspiração aqui é Aristóteles e seus conceitos de tóde ti (“algo de um certo tipo”) e enteléquia (“ter um fim em si mesmo”).
O
objetivo do autor é observar o papel que as instituições sociais
(agrupamentos sociais legitimados, formados pela projeção da vontade individual)
desempenham na sociedade, assegurando a estabilidade e o desenvolvimento
humano. Tais instituições são realizações do princípio comunal no Homem –
princípio esse que é inerente a todos os seres vivo, segundo Aristóteles
(espécie). [Comunidade ≠ Instituição social] Comunidade é, portanto, algo como
uma humanidade virtual (potencial) pronta para ser efetuada em cada indivíduo.
Não se confunde com instituição social que é apenas a sua efetuação histórica,
determinação de uma coletividade de indivíduos.
***
Os indivíduos tornam-se Homens (ou seja, gozam de uma humanidade, uma
“participação” na espécie humana) quando se comunizam (“diferenciam-se” na
comunidade). Apenas na comunidade, segundo Aristóteles (Apud Schmitz), o
indivíduo cumpre seu destino histórico (ser Homem).
***
As instituições realizam uma espécie de destino histórico-comunal do Homem. [1]
***
Conceitos importantes:
a) tóde
tì e enteléquia (Aristóteles);
b) Princípio
comunal:
ser um tipo (um exemplar) dentro de uma categoria (espécie).
c) Comunalidade: comunidade
como potência.
*** Citações ***
[...]
uma comunidade não é, meramente, a reciprocidade de indivíduos, sem suas
relações recíprocas externas ou internas, pois os indivíduos não constroem uma
comunidade por causa de suas relações
individuais uns com os outros. Tais
relações compreendem uma coletividade. A natureza e a realidade da comunidade não devem ser
identificadas simplesmente com as relações interpessoais, porque o sujeito da
comunidade não são os indivíduos que mantêm essas relações, e nem suas
experiências mútuas. O sujeito da comunidade, o
referente da palavra, é somente a própria comunidade; ou antes, estritamente
falando, não há nenhum sujeito comum da
comunidade, simplesmente porque a comunidade é, em si,
um certo tipo de sujeito.
Se
a comunidade é ela mesma um tipo de sujeito, ainda assim não deve ser inflada
em um grande indivíduo, colocado
acima, abaixo ou junto à rede de indivíduos. Se a comunidade não é um conjunto
de inter-relações, não é, também, um tipo especial de entidade: um individuum publicum.
O
conceito, no caso, lembra ‘o povo’; a ‘nação’, ‘o Estado’, e pode, é claro, ser
utilizado de forma correta e honesta, mas algumas vezes, oculta uma inchação indevida.
A forma mais extrema encontra-se no absolutismo do Estado totalitário; mas
quando a democracia de massa é colocada sob pressão, ela também pode oscilar
entre apelar, por um lado, para a coletividade de indivíduos e por outro, para
uma vaga entidade pública, tal como ‘o interesse público’, ‘defesa nacional’ ou
‘política estatal’.
É
digno de nota, além disso, que, enquanto a redução à intersubjetividade
identifica a comunidade com a coletividade de indivíduos internamente
relacionados, a redução a uma coleção externa oscila entre tomar a comunidade
para ser a coleção de indivíduos e tomá-la como Indivíduo coletivo (p.
181-182).
Diz-se,
algumas vezes, que Hegel identificava a comunidade, o Volk e o Estado com um tipo de grande Indivíduo, um tipo de pessoa
pública soberana (Der absolute Geist),
mas isso, certamente, não é correto. Há uma diferença avassaladora entre o
pensamento de Hobbes e o de Rousseau, por um lado, em que a individualidade
empresta sua forma a todas as representações concretas, e Hegel, por outro, que
articulou uma forma mais complexa de pensamento que incluía o indivíduo e o
universal na realidade concreta. De qualquer forma – ou pelo menos assim me
parece –, desde o Parmênides de
Platão e os lógicos medievais que debatiam o estatuto dos universais, ficou
claro, em princípio, que a comunidade (que é, em algum
sentido, uma espécie de ‘universal’) não pode ser um indivíduo com letra
maiúscula. Então, em ambas as reduções – à coletividade externa e
interna –, bem como a inflação do Indivíduo coletivo, são ilusões da comunidade,
porque a identificam com um de seus constituintes, a saber, a individualidade.
A identificação surge quando o pensamento adota a forma abstrata de
racionalidade que identifica cada coisa concreta como um indivíduo (p. 182).
Por sua própria natureza, a comunidade
atrai para si a autoridade, o poder e a devoção. O patriotismo é ainda uma
virtude poderosa, e o nacionalismo uma causa que não hesita em pedir ao
indivíduo que sacrifique a própria vida em seu favor. Há uma profunda – e como
em todos os assuntos profundos – e perigosa sabedoria nessa atração, pois o indivíduo é em si
mesmo incompleto, e essas realidades comunais, sociais e políticas lhe oferecem
uma completude, ou, antes, é mais verdadeiro dizer que elas já nutriram
o indivíduo tal como as mães o fizeram (p. 182).
Não
é necessário ser platônico (supostamente afirmando a realidade separada dos
universais), nem kantiano (afirmando a subjetividade transcendental de certas
formas universais, como as categorias), para sustentar o apriorismo da comunidade. O padrão Aristóteles contrasta com o
padrão Platão e defende a primazia do indivíduo; mas o que é o indivíduo
aristotélico? Aristóteles o chama de tóde ti, ‘esse algo de um certo tipo’, E porque o
indivíduo aristotélico é sempre de uma determinada forma, há, no indivíduo, o
que se poderia chamar de latitude transatômica, uma generosidade ontológica, a
saber, a forma substancial que, no homem, é o princípio racional da completude,
a enteléquia.
Então, é sobre essa
natureza formal, com sua inerente socialidade, que Aristóteles constrói a polis. O princípio da forma humana residente nos
indivíduos aristotélicos, portanto, é o próprio solo da comunidade. Tal
natureza, entretanto, não é uma mera abstração mental para classificar ou
definir os homens individuais, é, antes, o princípio
real de não-restrição do indivíduo e de sua individualidade. É o solo real
para a própria realidade daquela partilha ontológica que é a raiz e o tráfego
da comunidade.
Voltei
a Aristóteles por suas razões. Primeiro, porque acho sua caracterização inicial do ser
humano sempre frutuosa. Mas muito mais que isso, com sua ajuda, quero
insistir que não é necessário conferir uma existência separada aos universais para defender uma certa prioridade da
comunidade sobre o indivíduo, ou defender o tipo abrangente de universalidade
que transcende o indivíduo na ordem concreta. Pois a comunalidade pertence ao homem individual como
parte de sua constituição ontológica. Dentre as causas que fizeram
surgir a comunidade, a comunalidade
– isto é, o potencial de comunidade – é anterior à realidade da comunidade (p. 183).
Sobre
o princípio comunal (TÌ) = (nada-em-comum)
[...]
o princípio comunal tem a forma de uma certa
‘inexistência’, uma potencialidade, uma possibilidade real. Pois há algo fora
de alcance nos seres humanos individuais que não se baseia em uma
individualidade já completada; e isso é sua incompletude ontológica radical. Essa incompletude pertence à
própria natureza do homem, não simplesmente na medida em que ele é
individualizado, mas além disso; de forma que a própria natureza do homem é, ela mesma, radicalmente
incompleta. Juntamente
com sua participação com outros seres humanos na sociedade, essa incompletude
pode ser remediada por um chamado religioso à transcendência; mas ela é
preenchida, ao menos em parte, também através da dependência do alcance e da
escala da natureza. A comunidade pode incorporar tanto as estratégias religiosas
e naturais de completude, mediando entre elas e tomando forma de acordo com o
modelo especificamente humano que medeia a incompletude ontológica radical do
homem. A
comunalidade é concomitante com o indivíduo humano porque o indivíduo não pode
ser humano sem ela, mas antecede o indivíduo porque é um princípio
constitutivo: tóde tì. Junto com o desenvolvimento
genético e psicológico, o indivíduo humano precisa de reconhecimento da
própria incompletude radical para poder alcançar o ambiente social que o
rodeia. Mas isso que está além do alcance já está constituído como o
princípio comunal (tì). A especificidade do princípio comunal, sua universalidade, é encontrada em
todos os seres naturais; é o seu caráter de espécie,
seu tipo. No homem, entretanto, essa especificidade é o que Aristóteles
chamou de princípio racional, e o que os antropólogos descrevem em termos de
capacidade de linguagem, tecnologia, arte e religião. A prioridade da
comunidade é um factum antropológico
que fornece ao indivíduo uma agenda de realização de uma humanidade mais
completa. O ambiente social não apenas o rodeia, mas o espera.
Se
o caráter potencial do princípio comunal nos levou a chamá-lo de
‘inexistência’, essa designação, contudo, não deve ser mal entendida. Pois,
como princípio constitutivo de um indivíduo existente, o princípio comunal no
indivíduo é tão real quanto qualquer outro fator que ‘constitua’ esse indivíduo.
A comunalidade é ‘inexistente’, na medida em que é potencial, mas não no
sentido de que é uma mera abstração mental. No indivíduo a enteléquia é a forma
radical concreta de incompletude ontológica, e sua concretude é passível de ser
menosprezada pelas teorias usuais do significado (p. 184-185)
Segundo
Aristóteles, então, a unidade ontológica primária é ‘isso (algo) de um certo
tipo’ (tóde tì). Quando esse ‘tipo’ é
a humanidade, a segunda parte da fórmula (tì)
inclui o princípio comunal. Isso quer dizer: sendo animal e racional, o homem
precisa da completude através da socialidade com os modelos de linguagem e ação.
Assim, o princípio comunal, em sua colocação ontológica, não é nem um universal
abstrato nem um particular abstrato; nem é simplesmente individual. É um modo
distintivo de realidade que demanda um modo distintivo de pensamento e análise.
O que existe enquanto humano, então, não é nem particular nem universal (já que
estes são produtos da abstração), mas antes: indivíduos-enquanto-comunais. De forma que a pluralidade biológica
dos seres humanos (a espécie) alcance, através de sua energia inerente, as pluralidades
sociais dos grupos humanos (comunidade) (p. 185).
Nos
termos de Hegel, as instituições são as autodeterminações de uma comunidade (p.
186).
Se a caracterização de Aristóteles da
unidade ontológica é correta, então tanto a particularidade quanto a
universalidade são abstrações. O que existe não é nem o
particular nem o universal, mas os indivíduos-enquanto-comunais. A tarefa
ontológica da instituição, então, é realizar em um determinado modo o princípio
comunal; de forma que a instituição seja necessária – não para assegurar a
própria comunidade, como se esta fosse algo um tanto separado dos indivíduos –
mas para assegurar
o bem comum dos
indivíduos. Pois o bem dos indivíduos inclui o bem comunal, a
completude racional nas e através das instituições determinadas que articulam a
comunidade duradoura e ambiental na qual os indivíduos vivem sua vida.
Tais reflexões quanto à unidade
ilusória que constitui a comunidade desembocaram nas seguintes conclusões: a de
que o indivíduo, entendido como tóde tì,
é a raiz da comunidade, e a de que o princípio comunal (tì qua humano) percebe
a si mesmo – não primariamente como uma coleção de indivíduos –, mas antes,
como a unidade de instituições reais, determinadas. Desde que esse
princípio comunal está aberto a tornar-se realidade sob condições históricas e
contingenciais, a unidade das instituições estará sujeita a tais condições
também. De fato, os indivíduos e suas comunidades e instituições estará sujeita
a tais condições também. De fato, os indivíduos e suas comunidades e
instituições serão inteiramente históricos, mas a historicidade estará ancorada
na constituição ontológica dos indivíduos-enquanto-comunais.
Por
tal razão, mesmo que a comunidade esteja profundamente enraizada na natureza
humana, a percepção da comunidade nunca estará assegurada. Pois, além de estar
sujeita às vicissitudes das forças naturais, a comunidade precisa ser desenhada
através de seus agenciamentos históricos – sociais, culturais e técnicos (p.
187-188).
[...]
as formas comunais são remédios para a radical incompletude da natureza humana,
então cada forma social que morre demonstra, desse modo, sua própria
incompletude, também [...] A
saúde social em nível ótimo requer tanto estabilidade social quanto mudança
social (para não mencionar um certo grau de mera novidade); e isso
requer uma forma social que possua legitimidade em si mesma, para que possa
trazer à tona a conformidade e também ser capaz de legar legitimidade à
sucessora (p. 189).
[1] “A tarefa
ontológica da instituição, então, é realizar em um determinado modo o princípio
comunal; de forma que a instituição seja necessária – não para assegurar a
própria comunidade, como se esta fosse algo um tanto separado dos indivíduos –
mas para assegurar o bem comum dos indivíduos” (p. 187-188).
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