O trabalho divide-se em três partes: a) Crítica do conceito de comunidade; b) Ontologia da comunidade e; c) Comunidade e experiência.
Objetivos:
1) Genealogizar o conceito de comunidade no campo da Comunicação, tentar compreender sua dispersão semântica e os agenciamentos que o nome comunidade produz em setores da pesquisa comunicacional como a comunicação comunitária e a cibercultura;
2) Apresentar as duas matrizes semânticas do conceito: a substancialista/transcendente (romântica) e a des-substancialista/imanente;
3) Apresentar casos (experiências) que ilustram a comunidade como fenômeno estético (acontecimento).
Dispersão & Agenciamentos:
Na Europa, comunidade evoca experiências aterradoras como o nazismo e o comunismo, na parte oriental, aos fundamentalismos religiosos. No Brasil, o conceito foi introduzido pelas Ciências Sociais para se referir à massa imigrante que até meados do século XX eram culturalmente bem definidas. Na Comunicação, em especial, no setor da comunicação comunitária, comunidade é sinônimo de favela, grupos subalterno excluído das benesses da civilização, sendo quase uma blasfêmia chamar um condomínio de luxo de comunidade. No setor da cibercultura, comunidade é sinônimo de rede social, sendo os casos mais famosos o Orkut e, mais recentemente, o Facebook e o tweetter...
A matriz conceitual substancialista/transcendente:
Na comunicação comunitária a matriz é gramsciana, a comunidade comporia um “bloquinho” dentro de um bloco maior (Bloco Histórico), no interior do qual se construiria uma contra-hegemonia a partir de práticas culturais e educativas. Na cibercultura, distinguimos, ao menos 3 autores: Max Weber, Émile Durkheim e Georg Simmel.
Em Weber, o conceito aparece no seu estudo sobre a solidariedade social, no qual o autor distingue a comunidade da sociação. A comunidade, diz Weber, se baseia no sentimento subjetivo. Já a sociação se baseia no cálculo racional; trata-se de um laço motivado por algum interesse.
Em Durkheim, o conceito aparece também num estudo sobre a solidariedade social (cito aqui, em particular a obra “Da divisão do trabalho social”). Durkheim distingue dois tipos de solidariedade, a mecânica e a orgânica. A primeira estaria presente nas formas sociais da Idade Média, a exemplo das famílias clânicas, tribos etc; onde a tradição e o patriarcado exercem um papel fundamental (partilha simbólica). A segunda, por sua vez, possui um caráter funcional; provém da divisão do trabalho social, a partir da articulação de homens livres. Esta solidariedade é aquela que encontramos entre patrão e empregado ou entre comprador e vendedor ou mesmo entre professor e aluno, um tipo de relação voltado à produção de bens (materiais ou não).
Finalmente, em Simmel, a comunidade aparece em seus estudos sobre a micro-sociologia. Para Simmel, a sociedade nada mais é do que uma “comunidade alargada”; se queremos compreender a sociedade é fundamental compreender desde seus pequenos mecanismos... O pressuposto de Simmel, contudo, baseia em parte no “romantismo” próprio da época. O qual incidirá também sobre Weber e Durkheim encontrando sua máxima expressão em Ferdinand Tönnies: de que teria havido uma mudança nas relações sociais na passagem das sociedades tradicionais para a sociedade moderna.
Neste panorama, destaco ainda Michel Maffesoli. Este retomará tanto SImmel, quanto Durkheim e Weber para argumentar o fim da sociedade, das formas societais (fim já anunciado por Jean Baudrillard nos anos 80) e a emergência das “tribos”... Maffesoli, contudo, não faz qualquer distinção entre comunidade, grupos social, tribo ou associação sendo, em muitos casos, tomados como sinônimos. [1]
Este é o conjunto semântico da comunidade que a Comunicação hoje se vale para realizar suas pesquisas. [2]
A substância/entidade aristotélica e o grande problema da comunidade como coisa:
Mas estes conceitos ancoram-se numa perspectiva transcendental e substancialista. Em todos estes autores (Gramsci, Weber, Tönnies, Durkheim e Simmel – exceto talvez em Maffesoli), comunidade é o compartilhamento de uma substância comum. O problema é que este comum substanciado legitima formas de apropriação do comum (bens comuns tais como território, língua, cultura, etnia, eleitores etc.), tornando-se alvo de disputas políticas. Em “Comunidades Imaginadas”, Benedict Anderson vê a constituição de uma comunidade/identidade “supostamente européia” como efeito de um jogo político motivado por um comum (território) que é objeto de cobiça. Esta lógica não é alheia às rádios e TVs comunitárias, conforme aponta muitos estudos sobre sua prática e funcionamento interno: concessões para operar tal serviço são dadas com base num suposto comum que, posteriormente, torna-se legitimador do poder que se constitui em seu nome. Em ambos os casos, comunidade é objeto de interesse tendo sempre alguém para falar (ou reivindicar algo) em seu nome, mesmo que para isso tenha que excluir tantos outros da comunidade.
Ademais, a noção substancialista da comunidade agencia outras questões no campo comunicacional. Questões como sociabilidade, dificilmente tem lugar num tradicional setor de pesquisa como a Comunicação Comunitária. Esta, dá preferência às políticas de comunicação, ao resgate da cidadania, à des-alienação de grupos marginalizados etc. Na cibercultura, por sua vez, embora a sociabilidade seja um objeto premente, é nítido a “substancia” comunitária presente no diversos interesses (políticos ou pessoais voltados ao consumo ou a processos de subjetivação) que motivam a formação de grupos. Além disso, neste setor, não existe diferenciação entre o que é comunidade, associação ou mesmo rede social, já que todas estas expressões dizem respeito à apropriação de uma substancia comum.
O que é, afinal, comunidade?
Um dos objetivos deste projeto é definir o que é comunidade. Tal definição supõe restrição semântica (de modo a permitir o seu entendimento como aquilo que é diferente às outras formas sociais: associação, tribo, rede social etc.), mas também ampliação (possibilidade de observar a comunidade para além da substancia comum [território, língua, cultura etc.], como aquilo que vivifica [anima] as formações, não aquilo que fica [petrifica], como aquilo que destrói [põe em risco] as totalizações feitas em seu nome; movimento de dupla face: retraimento e expansão, acolhimento e explosão). Neste caso, poderíamos até nos perguntar: o que a tradição romântica (de Rousseau a Tönnies) nominou comunidade (o corpo comunal, fusional etc) é, de fato, comunidade?
Os Filósofos da Comunidade – Bataille, Nancy, Blanchot, Derrida, Agamben e Espósito
O grande passo para a des-substancialização da comunidade foi dado por Georges Bataille. Sua célebre expressão “a comunidade dos que não tem comunidade” serviu de referência para toda uma geração de pensadores que imanentizaram a comunidade. A comunidade de Bataille é uma comunidade negativa (no sentido foucaultiano, a afirmação de um não-positivo), desmotivada, indiferente e sem interesse; é composta por homens que se recusam pertencerem a um corpo coletivo ou a qualquer soberania que “fale por eles”, a qualquer fundação ou enraizamento. É, como diz Giorgio Agamben, “a recusa de toda comunidade positiva fundada sobre a realização ou a participação de um pressuposto comum”.
Jean-Luc Nancy e Maurice Blanchot seguiram as trilhas de Bataille. Ambos influenciados pelo clima de incerteza dos anos 80/90 (fim do socialismo europeu e a emergência de uma sociedade globalizada), assim como o anjo da História de Paul Klee, sendo arrastados por tais acontecimentos, caminhavam para o futuro olhando para a experiência da comunidade (do viver junto) presente em projetos como o comunismo e o fascismo (formas totalitárias que excluíam a diferença, a alteridade, chegando ao absurdo de exterminá-la).
A imanência da comunidade é a possibilidade de pensá-la como produto de forças, relação deleuziana como resultado de intensidades, velocidades e afetação do caos. Vivemos neste caos só não o compreendemos assim. Este jogo de forças, de relações de forças, decorre a partir de um chamado do fora que nos faz lembrar do fato de que somos entes esvaziados. Não há em nós, de fato, uma alma ou um espírito prestes a se completar, mas um vazio que se desloca incessantemente. A completude do vazio é como a morte por petrificação – eis a ontologia.
É este o apelo de Nancy e Blanchot conforme suas críticas sobre as formas sociais fundadas no enraizamento, na identidade, nos laços fortes (sanguíneos e territoriais) por detrás de projetos como Auschwitz. Contra isso, é preciso fugir das totalizações ou a transcendência da comunidade. Advém daí o Outrem (Lèvinas) e o cuidado com o Outro.
Por isso, Giorgio Agamben, diz haver comunidade na “potentia passiva”. Esta é a morte do sujeito, enquanto instância de subjetivação, ele é dono de si. Porém, na comunidade, somos obrigados à ela, devemos algo a ela. Comunidade (do latim communitas, communus), como reitera Roberto Espósito, é dívida, ônus, tributo (munus) que se para ao Outro.
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