domingo, 5 de agosto de 2012

Comunidade – a unidade ilusória


Kenneth L. Schmitz

O texto discorre sobre o equívoco de se pensar a comunidade ora como uma “coletividade de indivíduos” sejam esses ligados externamente (constituindo um grande Indivíduo, p. ex.: uma comuna, um partido político), sejam internamente (intersubjetivamente, p. ex.: as amizades). Tal identificação pode levar a crer que a comunidade possui um sujeito, e que esse sujeito é os próprios indivíduos (sujeito coletivo: o nós) quando, na verdade, a comunidade é o seu próprio sujeito (impessoal). Para Schmitz, comunidade se define mais como um princípio de realização do humano (enteléquia), portanto anterior ao indivíduo, do que algo resultante de suas interações. (Daí a necessidade de se separar indivíduo de comunidade). A inspiração aqui é Aristóteles e seus conceitos de tóde ti (“algo de um certo tipo”) e enteléquia (“ter um fim em si mesmo”).
O objetivo do autor é observar o papel que as instituições sociais (agrupamentos sociais legitimados, formados pela projeção da vontade individual) desempenham na sociedade, assegurando a estabilidade e o desenvolvimento humano. Tais instituições são realizações do princípio comunal no Homem – princípio esse que é inerente a todos os seres vivo, segundo Aristóteles (espécie). [Comunidade ≠ Instituição social] Comunidade é, portanto, algo como uma humanidade virtual (potencial) pronta para ser efetuada em cada indivíduo. Não se confunde com instituição social que é apenas a sua efetuação histórica, determinação de uma coletividade de indivíduos.

*** Os indivíduos tornam-se Homens (ou seja, gozam de uma humanidade, uma “participação” na espécie humana) quando se comunizam (“diferenciam-se” na comunidade). Apenas na comunidade, segundo Aristóteles (Apud Schmitz), o indivíduo cumpre seu destino histórico (ser Homem).

*** As instituições realizam uma espécie de destino histórico-comunal do Homem. [1]

*** Conceitos importantes:
a) tóde tì e enteléquia (Aristóteles);
b) Princípio comunal: ser um tipo (um exemplar) dentro de uma categoria (espécie).
c) Comunalidade: comunidade como potência.

*** Citações ***

[...] uma comunidade não é, meramente, a reciprocidade de indivíduos, sem suas relações recíprocas externas ou internas, pois os indivíduos não constroem uma comunidade por causa de suas relações individuais uns com os outros. Tais relações compreendem uma coletividade. A natureza e a realidade da comunidade não devem ser identificadas simplesmente com as relações interpessoais, porque o sujeito da comunidade não são os indivíduos que mantêm essas relações, e nem suas experiências mútuas. O sujeito da comunidade, o referente da palavra, é somente a própria comunidade; ou antes, estritamente falando, não há nenhum sujeito comum da comunidade, simplesmente porque a comunidade é, em si, um certo tipo de sujeito.
Se a comunidade é ela mesma um tipo de sujeito, ainda assim não deve ser inflada em um grande indivíduo, colocado acima, abaixo ou junto à rede de indivíduos. Se a comunidade não é um conjunto de inter-relações, não é, também, um tipo especial de entidade: um individuum publicum.
O conceito, no caso, lembra ‘o povo’; a ‘nação’, ‘o Estado’, e pode, é claro, ser utilizado de forma correta e honesta, mas algumas vezes, oculta uma inchação indevida. A forma mais extrema encontra-se no absolutismo do Estado totalitário; mas quando a democracia de massa é colocada sob pressão, ela também pode oscilar entre apelar, por um lado, para a coletividade de indivíduos e por outro, para uma vaga entidade pública, tal como ‘o interesse público’, ‘defesa nacional’ ou ‘política estatal’.
É digno de nota, além disso, que, enquanto a redução à intersubjetividade identifica a comunidade com a coletividade de indivíduos internamente relacionados, a redução a uma coleção externa oscila entre tomar a comunidade para ser a coleção de indivíduos e tomá-la como Indivíduo coletivo (p. 181-182).


Diz-se, algumas vezes, que Hegel identificava a comunidade, o Volk e o Estado com um tipo de grande Indivíduo, um tipo de pessoa pública soberana (Der absolute Geist), mas isso, certamente, não é correto. Há uma diferença avassaladora entre o pensamento de Hobbes e o de Rousseau, por um lado, em que a individualidade empresta sua forma a todas as representações concretas, e Hegel, por outro, que articulou uma forma mais complexa de pensamento que incluía o indivíduo e o universal na realidade concreta. De qualquer forma – ou pelo menos assim me parece –, desde o Parmênides de Platão e os lógicos medievais que debatiam o estatuto dos universais, ficou claro, em princípio, que a comunidade (que é, em algum sentido, uma espécie de ‘universal’) não pode ser um indivíduo com letra maiúscula. Então, em ambas as reduções – à coletividade externa e interna –, bem como a inflação do Indivíduo coletivo, são ilusões da comunidade, porque a identificam com um de seus constituintes, a saber, a individualidade. A identificação surge quando o pensamento adota a forma abstrata de racionalidade que identifica cada coisa concreta como um indivíduo (p. 182).


Por sua própria natureza, a comunidade atrai para si a autoridade, o poder e a devoção. O patriotismo é ainda uma virtude poderosa, e o nacionalismo uma causa que não hesita em pedir ao indivíduo que sacrifique a própria vida em seu favor. Há uma profunda – e como em todos os assuntos profundos – e perigosa sabedoria nessa atração, pois o indivíduo é em si mesmo incompleto, e essas realidades comunais, sociais e políticas lhe oferecem uma completude, ou, antes, é mais verdadeiro dizer que elas já nutriram o indivíduo tal como as mães o fizeram (p. 182).


Não é necessário ser platônico (supostamente afirmando a realidade separada dos universais), nem kantiano (afirmando a subjetividade transcendental de certas formas universais, como as categorias), para sustentar o apriorismo da comunidade. O padrão Aristóteles contrasta com o padrão Platão e defende a primazia do indivíduo; mas o que é o indivíduo aristotélico? Aristóteles o chama de tóde ti, ‘esse algo de um certo tipo’, E porque o indivíduo aristotélico é sempre de uma determinada forma, há, no indivíduo, o que se poderia chamar de latitude transatômica, uma generosidade ontológica, a saber, a forma substancial que, no homem, é o princípio racional da completude, a enteléquia. Então, é sobre essa natureza formal, com sua inerente socialidade, que Aristóteles constrói a polis. O princípio da forma humana residente nos indivíduos aristotélicos, portanto, é o próprio solo da comunidade. Tal natureza, entretanto, não é uma mera abstração mental para classificar ou definir os homens individuais, é, antes, o princípio real de não-restrição do indivíduo e de sua individualidade. É o solo real para a própria realidade daquela partilha ontológica que é a raiz e o tráfego da comunidade.
Voltei a Aristóteles por suas razões. Primeiro, porque acho sua caracterização inicial do ser humano sempre frutuosa. Mas muito mais que isso, com sua ajuda, quero insistir que não é necessário conferir uma existência separada aos universais para defender uma certa prioridade da comunidade sobre o indivíduo, ou defender o tipo abrangente de universalidade que transcende o indivíduo na ordem concreta. Pois a comunalidade pertence ao homem individual como parte de sua constituição ontológica. Dentre as causas que fizeram surgir a comunidade, a comunalidade – isto é, o potencial de comunidade – é anterior à realidade da comunidade (p. 183).


Sobre o princípio comunal (TÌ) = (nada-em-comum)
[...] o princípio comunal tem a forma de uma certa ‘inexistência’, uma potencialidade, uma possibilidade real. Pois há algo fora de alcance nos seres humanos individuais que não se baseia em uma individualidade já completada; e isso é sua incompletude ontológica radical. Essa incompletude pertence à própria natureza do homem, não simplesmente na medida em que ele é individualizado, mas além disso; de forma que a própria natureza do homem é, ela mesma, radicalmente incompleta. Juntamente com sua participação com outros seres humanos na sociedade, essa incompletude pode ser remediada por um chamado religioso à transcendência; mas ela é preenchida, ao menos em parte, também através da dependência do alcance e da escala da natureza. A comunidade pode incorporar tanto as estratégias religiosas e naturais de completude, mediando entre elas e tomando forma de acordo com o modelo especificamente humano que medeia a incompletude ontológica radical do homem. A comunalidade é concomitante com o indivíduo humano porque o indivíduo não pode ser humano sem ela, mas antecede o indivíduo porque é um princípio constitutivo: tóde tì. Junto com o desenvolvimento genético e psicológico, o indivíduo humano precisa de reconhecimento da própria incompletude radical para poder alcançar o ambiente social que o rodeia. Mas isso que está além do alcance já está constituído como o princípio comunal (). A especificidade do princípio comunal, sua universalidade, é encontrada em todos os seres naturais; é o seu caráter de espécie, seu tipo. No homem, entretanto, essa especificidade é o que Aristóteles chamou de princípio racional, e o que os antropólogos descrevem em termos de capacidade de linguagem, tecnologia, arte e religião. A prioridade da comunidade é um factum antropológico que fornece ao indivíduo uma agenda de realização de uma humanidade mais completa. O ambiente social não apenas o rodeia, mas o espera.
Se o caráter potencial do princípio comunal nos levou a chamá-lo de ‘inexistência’, essa designação, contudo, não deve ser mal entendida. Pois, como princípio constitutivo de um indivíduo existente, o princípio comunal no indivíduo é tão real quanto qualquer outro fator que ‘constitua’ esse indivíduo. A comunalidade é ‘inexistente’, na medida em que é potencial, mas não no sentido de que é uma mera abstração mental. No indivíduo a enteléquia é a forma radical concreta de incompletude ontológica, e sua concretude é passível de ser menosprezada pelas teorias usuais do significado (p. 184-185)


Segundo Aristóteles, então, a unidade ontológica primária é ‘isso (algo) de um certo tipo’ (tóde tì). Quando esse ‘tipo’ é a humanidade, a segunda parte da fórmula () inclui o princípio comunal. Isso quer dizer: sendo animal e racional, o homem precisa da completude através da socialidade com os modelos de linguagem e ação. Assim, o princípio comunal, em sua colocação ontológica, não é nem um universal abstrato nem um particular abstrato; nem é simplesmente individual. É um modo distintivo de realidade que demanda um modo distintivo de pensamento e análise. O que existe enquanto humano, então, não é nem particular nem universal (já que estes são produtos da abstração), mas antes: indivíduos-enquanto-comunais. De forma que a pluralidade biológica dos seres humanos (a espécie) alcance, através de sua energia inerente, as pluralidades sociais dos grupos humanos (comunidade) (p. 185).


Nos termos de Hegel, as instituições são as autodeterminações de uma comunidade (p. 186).


Se a caracterização de Aristóteles da unidade ontológica é correta, então tanto a particularidade quanto a universalidade são abstrações. O que existe não é nem o particular nem o universal, mas os indivíduos-enquanto-comunais. A tarefa ontológica da instituição, então, é realizar em um determinado modo o princípio comunal; de forma que a instituição seja necessária – não para assegurar a própria comunidade, como se esta fosse algo um tanto separado dos indivíduos – mas para assegurar o bem comum dos indivíduos. Pois o bem dos indivíduos inclui o bem comunal, a completude racional nas e através das instituições determinadas que articulam a comunidade duradoura e ambiental na qual os indivíduos vivem sua vida.
Tais reflexões quanto à unidade ilusória que constitui a comunidade desembocaram nas seguintes conclusões: a de que o indivíduo, entendido como tóde tì, é a raiz da comunidade, e a de que o princípio comunal (tì qua humano) percebe a si mesmo – não primariamente como uma coleção de indivíduos –, mas antes, como a unidade de instituições reais, determinadas. Desde que esse princípio comunal está aberto a tornar-se realidade sob condições históricas e contingenciais, a unidade das instituições estará sujeita a tais condições também. De fato, os indivíduos e suas comunidades e instituições estará sujeita a tais condições também. De fato, os indivíduos e suas comunidades e instituições serão inteiramente históricos, mas a historicidade estará ancorada na constituição ontológica dos indivíduos-enquanto-comunais.
Por tal razão, mesmo que a comunidade esteja profundamente enraizada na natureza humana, a percepção da comunidade nunca estará assegurada. Pois, além de estar sujeita às vicissitudes das forças naturais, a comunidade precisa ser desenhada através de seus agenciamentos históricos – sociais, culturais e técnicos (p. 187-188).


[...] as formas comunais são remédios para a radical incompletude da natureza humana, então cada forma social que morre demonstra, desse modo, sua própria incompletude, também [...] A saúde social em nível ótimo requer tanto estabilidade social quanto mudança social (para não mencionar um certo grau de mera novidade); e isso requer uma forma social que possua legitimidade em si mesma, para que possa trazer à tona a conformidade e também ser capaz de legar legitimidade à sucessora (p. 189).


[1] “A tarefa ontológica da instituição, então, é realizar em um determinado modo o princípio comunal; de forma que a instituição seja necessária – não para assegurar a própria comunidade, como se esta fosse algo um tanto separado dos indivíduos – mas para assegurar o bem comum dos indivíduos” (p. 187-188).

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Projeto comunidade silenciosa


O trabalho divide-se em três partes: a) Crítica do conceito de comunidade; b) Ontologia da comunidade e; c) Comunidade e experiência.
Objetivos:
1)      Genealogizar o conceito de comunidade no campo da Comunicação, tentar compreender sua dispersão semântica e os agenciamentos que o nome comunidade produz em setores da pesquisa comunicacional como a comunicação comunitária e a cibercultura;
2)      Apresentar as duas matrizes semânticas do conceito: a substancialista/transcendente (romântica) e a des-substancialista/imanente;
3)      Apresentar casos (experiências) que ilustram a comunidade como fenômeno estético (acontecimento).

Dispersão & Agenciamentos:
Na Europa, comunidade evoca experiências aterradoras como o nazismo e o comunismo, na parte oriental, aos fundamentalismos religiosos. No Brasil, o conceito foi introduzido pelas Ciências Sociais para se referir à massa imigrante que até meados do século XX eram culturalmente bem definidas. Na Comunicação, em especial, no setor da comunicação comunitária, comunidade é sinônimo de favela, grupos subalterno excluído das benesses da civilização, sendo quase uma blasfêmia chamar um condomínio de luxo de comunidade. No setor da cibercultura, comunidade é sinônimo de rede social, sendo os casos mais famosos o Orkut e, mais recentemente, o Facebook e o tweetter...

A matriz conceitual substancialista/transcendente:
Na comunicação comunitária a matriz é gramsciana, a comunidade comporia um “bloquinho” dentro de um bloco maior (Bloco Histórico), no interior do qual se construiria uma contra-hegemonia a partir de práticas culturais e educativas. Na cibercultura, distinguimos, ao menos 3 autores: Max Weber, Émile Durkheim e Georg Simmel.
Em Weber, o conceito aparece no seu estudo sobre a solidariedade social, no qual o autor distingue a comunidade da sociação. A comunidade, diz Weber, se baseia no sentimento subjetivo. Já a sociação se baseia no cálculo racional; trata-se de um laço motivado por algum interesse.
Em Durkheim, o conceito aparece também num estudo sobre a solidariedade social (cito aqui, em particular a obra “Da divisão do trabalho social”). Durkheim distingue dois tipos de solidariedade, a mecânica e a orgânica. A primeira estaria presente nas formas sociais da Idade Média, a exemplo das famílias clânicas, tribos etc; onde a tradição e o patriarcado exercem um papel fundamental (partilha simbólica). A segunda, por sua vez, possui um caráter funcional; provém da divisão do trabalho social, a partir da articulação de homens livres. Esta solidariedade é aquela que encontramos entre patrão e empregado ou entre comprador e vendedor ou mesmo entre professor e aluno, um tipo de relação voltado à produção de bens (materiais ou não).
Finalmente, em Simmel, a comunidade aparece em seus estudos sobre a micro-sociologia. Para Simmel, a sociedade nada mais é do que uma “comunidade alargada”; se queremos compreender a sociedade é fundamental compreender desde seus pequenos mecanismos... O pressuposto de Simmel, contudo, baseia em parte no “romantismo” próprio da época. O qual incidirá também sobre Weber e Durkheim encontrando sua máxima expressão em Ferdinand Tönnies: de que teria havido uma mudança nas relações sociais na passagem das sociedades tradicionais para a sociedade moderna.
Neste panorama, destaco ainda Michel Maffesoli. Este retomará tanto SImmel, quanto Durkheim e Weber para argumentar o fim da sociedade, das formas societais (fim já anunciado por Jean Baudrillard nos anos 80) e a emergência das “tribos”... Maffesoli, contudo, não faz qualquer distinção entre comunidade, grupos social, tribo ou associação sendo, em muitos casos, tomados como sinônimos. [1]
Este é o conjunto semântico da comunidade que a Comunicação hoje se vale para realizar suas pesquisas. [2]

A substância/entidade aristotélica e o grande problema da comunidade como coisa:
Mas estes conceitos ancoram-se numa perspectiva transcendental e substancialista. Em todos estes autores (Gramsci, Weber, Tönnies, Durkheim e Simmel – exceto talvez em Maffesoli), comunidade é o compartilhamento de uma substância comum. O problema é que este comum substanciado legitima formas de apropriação do comum (bens comuns tais como território, língua, cultura, etnia, eleitores etc.), tornando-se alvo de disputas políticas. Em “Comunidades Imaginadas”, Benedict Anderson vê a constituição de uma comunidade/identidade “supostamente européia” como efeito de um jogo político motivado por um comum (território) que é objeto de cobiça. Esta lógica não é alheia às rádios e TVs comunitárias, conforme aponta muitos estudos sobre sua prática e funcionamento interno: concessões para operar tal serviço são dadas com base num suposto comum que, posteriormente, torna-se legitimador do poder que se constitui em seu nome. Em ambos os casos, comunidade é objeto de interesse tendo sempre alguém para falar (ou reivindicar algo) em seu nome, mesmo que para isso tenha que excluir tantos outros da comunidade.
Ademais, a noção substancialista da comunidade agencia outras questões no campo comunicacional. Questões como sociabilidade, dificilmente tem lugar num tradicional setor de pesquisa como a Comunicação Comunitária. Esta, dá preferência às políticas de comunicação, ao resgate da cidadania, à des-alienação de grupos marginalizados etc. Na cibercultura, por sua vez, embora a sociabilidade seja um objeto premente, é nítido a “substancia” comunitária presente no diversos interesses (políticos ou pessoais voltados ao consumo ou a processos de subjetivação) que motivam a formação de grupos. Além disso, neste setor, não existe diferenciação entre o que é comunidade, associação ou mesmo rede social, já que todas estas expressões dizem respeito à apropriação de uma substancia comum.

O que é, afinal, comunidade?
Um dos objetivos deste projeto é definir o que é comunidade.  Tal definição supõe restrição semântica (de modo a permitir o seu entendimento como aquilo que é diferente às outras formas sociais: associação, tribo, rede social etc.), mas também ampliação (possibilidade de observar a comunidade para além da substancia comum [território, língua, cultura etc.], como aquilo que vivifica [anima] as formações, não aquilo que fica [petrifica], como aquilo que destrói [põe em risco] as totalizações feitas em seu nome; movimento de dupla face: retraimento e expansão, acolhimento e explosão). Neste caso, poderíamos até nos perguntar: o que a tradição romântica (de Rousseau a Tönnies) nominou comunidade (o corpo comunal, fusional etc) é, de fato, comunidade?

Os Filósofos da Comunidade – Bataille, Nancy, Blanchot, Derrida, Agamben e Espósito
O grande passo para a des-substancialização da comunidade foi dado por Georges Bataille. Sua célebre expressão “a comunidade dos que não tem comunidade” serviu de referência para toda uma geração de pensadores que imanentizaram a comunidade. A comunidade de Bataille é uma comunidade negativa (no sentido foucaultiano, a afirmação de um não-positivo), desmotivada, indiferente e sem interesse; é composta por homens que se recusam pertencerem a um corpo coletivo ou a qualquer soberania que “fale por eles”, a qualquer fundação ou enraizamento. É, como diz Giorgio Agamben, “a recusa de toda comunidade positiva fundada sobre a realização ou a participação de um pressuposto comum”.
Jean-Luc Nancy e Maurice Blanchot seguiram as trilhas de Bataille. Ambos influenciados pelo clima de incerteza dos anos 80/90 (fim do socialismo europeu e a emergência de uma sociedade globalizada), assim como o anjo da História de Paul Klee, sendo arrastados por tais acontecimentos, caminhavam para o futuro olhando para a experiência da comunidade (do viver junto) presente em projetos como o comunismo e o fascismo (formas totalitárias que excluíam a diferença, a alteridade, chegando ao absurdo de exterminá-la). 
A imanência da comunidade é a possibilidade de pensá-la como produto de forças, relação deleuziana como resultado de intensidades, velocidades e afetação do caos. Vivemos neste caos só não o compreendemos assim. Este jogo de forças, de relações de forças, decorre a partir de um chamado do fora que nos faz lembrar do fato de que somos entes esvaziados. Não há em nós, de fato, uma alma ou um espírito prestes a se completar, mas um vazio que se desloca incessantemente. A completude do vazio é como a morte por petrificação – eis a ontologia.
É este o apelo de Nancy e Blanchot conforme suas críticas sobre as formas sociais fundadas no enraizamento, na identidade, nos laços fortes (sanguíneos e territoriais) por detrás de projetos como Auschwitz. Contra isso, é preciso fugir das totalizações ou a transcendência da comunidade. Advém daí o Outrem (Lèvinas) e o cuidado com o Outro.
Por isso, Giorgio Agamben, diz haver comunidade na “potentia passiva”. Esta é a morte do sujeito, enquanto instância de subjetivação, ele é dono de si. Porém, na comunidade, somos obrigados à ela, devemos algo a ela. Comunidade (do latim communitas, communus), como reitera Roberto Espósito, é dívida, ônus, tributo (munus) que se para ao Outro.


[1] Esta distinção, como veremos adiante, é de suma importância, e a faremos no momento oportuno.
[2] Com certa predominância da noção gramsciana de comunidade como grupo contra-hegemônico.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Analise do discurso


Enunciado: é a sequência acabada de palavras de uma língua emitida por uma ou vários falantes. O fechamento do enunciado é assegurado por um período de silêncio antes e depois da sequência de palavras, silêncios realizados pelos falantes. Um enunciado pode ser formado de uma ou de várias frases; pode-se falar de enunciado gramatical ou agramatical, semântico ou assemântico. Pode-se acrescentar a enunciado um adjetivo que qualifique o tipo de discurso (enunciado literário, polêmico, didático, etc.). Um conjunto de enunciados constitui os dados empíricos (corpus) da análise lingüística. “Maurício jogou muito bem hoje”.

Enunciação: Enunciação s eopõe a anunciado, no sentido mais corrente desta palavra, assim como fabricação se opõe a fabricado. A enunciação é  ato individual de utilização (ou criação) da língua, enquanto que o enunciado é o resultado desse ato. Assim, a enunciação é constituída pelo conjunto dos fatores e dos atos que provocam a produção de um enunciado. A enunciação é a emissão de um conjunto de signos que é produto da interação de indivíduos socialmente organizados.

Discurso: é o efeito de sentido construído no processo de interlocução (opõe-se a uma concepção de língua como mera tranmissão de informação). “O discurso não é fechado em si mesmo nem é do domínio exclusivo do locutor: aquilo que se diz significa em relação ao que não se diz, ao lugar social do qual se diz, para quem se diz, em que relação a outros discursos” (Orlandi). “É o ponto de articulação dos processos ideológicos e dos fenômenos linguísticos. A linguagem enquanto discurso de signos serve apenas como instrumento de comunicação ou suporte de pensamento, mas a linguagem enquanto discurso é interação, um modo de produção social. Ela não é neutra, inocente (na medida em que está engajada numa intencionalidade) mas o lugar privilegiado de manifestação da ideologia. Como elemento de mediação necessária entre o homem e sua realidade e como forma de engajá-lo na própria realidade, a linguagem é lugar de conflito, de confronto ideológico, não podendo ser estudada fora da sociedade, pois os processos que a constituem são histórico-sociais. Seu estudo não pode estar desvinculado de suas condições de produção.” (Brandão)

Formação Social: Caracteriza-se por um estado determinado de relações entre as classes que compõem uma comunidade em um determinado momento de sua história. Estas relações estão assentadas em práticas exigidas pelo modo de produção que domina a formação social. A essas relações correspondem posições políticas e ideológicas que mantém entre si laços de aliança, de antagonismo ou de dominação.

Formação Ideológica: É constituída por um conjunto complexo de atitudes e representações que não são nem individuais, nem universais, mas dizem respeito a mais ou menos diretamente, às posições de classes em conflito umas com as outras. Cada formação ideológica pode compreender várias formações discursivas interligadas.

Formação discursiva: conjunto de enunciados marcados pelas mesmas regularidades, pelas mesmas regras de formação. A formação discursiva se define pela sua relação com a formação ideológica, isto é, os textos que fazem parte de uma formação discursiva remetem a uma mesma formação ideológica. A formação discursiva determina “o que deve ser dito” a partir de um lugar social historicamente determinado. Um mesmo texto pode aparecer em formações discursivas diferentes, acarretando, com isso, variações de sentido.

Regras de formação: são regras constitutivas de uma formação discursiva possibilitando a determinação dos elementos que a compõem. Foucault apresenta-as como um sistema de relações entre os objetos do discurso, os diferentes tipos de enunciação que permeiam o discurso, os conceitos e as diversas estratégias capazes de dar conta de uma formação discursiva, permitindo ou excluindo certos temas ou teorias.

Sentido: para a Análise do Discurso, não existe um sentido a priori, mas um sentido que é construído, produzido no processo da interlocução, por isso deve ser referido às condições de produção (contexto histórico-social, interlocutores...) do discurso. Segundo Pêcheux, o sentido de uma palavra muda de acordo com a formação discursiva a que pertence.

Sujeito: na perspectiva da AD, a noção de sujeito deixa de ser uma noção idealista, imanente; o sujeito da linguagem não é o sujeito em si, mas tal como existe socialmente, interpelado pela ideologia. Dessa forma, o sujeito não é a origem, a fonte absoluta do sentido, porque na sua fala outras falas se dizem. Para Pêcheux, a ilusão discursiva do sujeito consiste em pensar que é ele a fonte, a origem do sentido do que diz”.

Forma-sujeito: denominação criada por Pêcheux para indicar o sujeito afetado pela ideologia.

Texto: unidade complexa de significação cuja análise implica as condições de sua produção (contexto histórico-social, situação, interlocutores). Para Orlandi, o texto como objeto teórico não é uma unidade completa; sua natureza é intervalar, pois o sentido do texto se constrói no espaço discursivo dos interlocutores. Mas como objeto empírico de análise, o texto pode ser um objeto acabado com começo, meio e fim.

Dialogismo (Bakhtin): O conceito de dialogismo nasce com Bakhtin (La Poétique de Dostoïevski, 1970, Barcelona: Barral Editores), que aponta para duas diferentes concepções do princípio dialógico: a do diálogo entre interlocutores e a do diálogo entre discursos. Para Bakhtin o texto se define como:

a)     Objeto significante ou de significação, isto é, o texto significa;
b)     Produto da criação ideológica ou de uma enunciação, com tudo o que está aí subentendido: contexto histórico, social, cultural, etc. Em outras palavras, o texto não existe fora da sociedade, só existe nela e para ela;
c)      Dialógico: já como conseqüência das duas características anteriores o texto é, para o autor, constitutivamente dialógico; define-se pelo diálogo entre os interlocutores e pelo diálogo com outros textos;
d)     Único, não reproduzível: os traços mencionados fazem do texto um objeto único, não reiterável ou repetível.
Para Bakhtin, a diferença entre as ciências naturais e as humanas é que as primeiras são monológicas e as segundas dialógicas: nas ciências naturais procura-se conhecer o objeto e nas ciências humanas procura-se conhecer um sujeito, produtor de textos.

“As ciências exatas são uma forma monológica do conhecimento: o intelecto contempla uma coisa e pronuncia-se sobre ela. Há um único sujeito: aquele que pratica um ato de cognição (de contemplação) e fala (pronuncia-se). Diante dele, há a coisa muda. Qualquer objeto do conhecimento (incluindo o homem) pode ser percebido e conhecido a título de coisa. Mas o sujeito como tal não pode ser percebido e conhecido a título de coisa porque, como sujeito, não pode permanecendo sujeito, ficar mudo; consequentemente, o conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico”.

O sujeito da cognição procura interpretar e compreender o outro sujeito em lugar apenas de conhecer um objeto.

“A compreensão é um forma de diálogo; ela está para a enunciação assim como a réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra”.

Para Bakhtin a vida é dialógica por natureza: é impossível pensar no homem fora das relações que o ligam ao outro (a alteridade define o ser humano; o outro é imprescindível para sua concepção). Podemos separar em Bakhtin duas noções de dialogismo:
a)     Diálogo entre interlocutores: quatro aspectos de sua concepção de dialogismo entre interlocutores devem ser mencionados:
a1) a interação ente interlocutores é o princípio fundador da linguagem;
a2) o sentido do texto e a significação das palavras dependem da relação entre sujeitos, ou seja, constroem-se na produção e na interpretação dos textos;
a3) a intesubjetividade é anterior à subjetividade: a relação entre os interlocutores não apenas funda a linguagem e dá sentido ao texto, como também constrói os próprios sujeitos produtores do texto;
a4) Bakhtin aponta dois tipos de sociabilidade: a relação ente sujeitos (ente interlocutores que interagem) e as dos sujeitos com a sociedade.
b)     Diálogo entre discursos: Para Bakhtin, o dialogismo é o princípio básico constitutivo da linguagem e a condição do sentido do discurso. O discurso não é individual: não é individual porque se constrói como um diálogo entre discursos, ou seja, porque mantém relação com outros discursos. O dialogismo, tal como Bakhtin o concebe, define o texto como “um tecido de muitas vozes”, ou de muitos textos ou discursos, que se entrecruzam, se completam, respondem umas às outras ou polemizam entre si no interior do texto. Neste sentido o discurso tem sempre um caráter ideológico.
b1) O dialogismo é constitutivo da linguagem – Para Bakhtin a linguagem é, por constituição dialógica e a língua não é ideologicamente neutra e sim complexa, pois, a partir do uso e dos traços do discurso que nela se imprimem, instalam-se na língua choques e contradições. Em outras palavras, para ele, no signo, confrontam-se índices de valor contraditório. Assim caracterizada, a língua é dialógica e complexa, pois nela se imprimem historicamente, e pelo uso, as relações dialógicas dos discursos. A linguagem, seja ela pensada como língua ou como discurso é, portanto, essencialmente dialógica. Ignorar sua natureza dialógica, é o mesmo, para Bakhtin, que apagar a ligação que existe entre a linguagem e a vida.
b2) Dialogismo e polifonia – Muitas vezes os termos dialogismo e polifonia foram usados como sinônimos nos escritos de Bakhtin ou por outros autores. Atualmente, alguns teóricos (Barros, 1997. In Bakhtin, dialogismo e construção do sentido) separam estes dois conceitos:

Em trabalho anterior sobre o assunto, distingui claramente dialogismo e polifonia, reservando o termo dialogismo para o princípio dialógico constitutivo da linguagem e de todo discurso e empregando a palavra polifonia para carcaterizar um certo tipo de texto, aquele em que o dialogismo se deixa ver, aquele em que são percebidas muitas vozes, por oposição aos textos monofônicos que escondem os diálogos que os constituem. Trocando em miúdos, pode-se dizer que o diálogo é condição de linguagem e do discurso, mas há textos polifônicos e monofônicos, conforme variem as estratégias discursivas empregadas. Nos textos polifônicos, os diálogos entre discursos mostram-se, deixam-se ver ou entrever; nos textos monofônicos eles se ocultam sob a aparência de um discurso único, de uma única voz. Monofonia e polifonia são, portanto, efeitos de sentido, decorrentes de procedimentos discursivos, de discursos por definição e constituição dialógicos”.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

C O M U N I D A D E * C O N F R O N T A D A (cont.)

Mas, de um jeito ou de outro, comunidade de intimidade  intensa ou sociedade de  um vínculo homogêneo e amplo, o ponto de referência de Bataille me parecera assim: a posição desejada (que atinge o amor  ou que renuncia a sociedade) de uma comunidade como assunção no interior, como a presença em si mesma de uma unidade realizada. Parecia-me, portanto, haver a necessidade de se analisar este pressuposto da comunidade fora claramente designada como o impossível e, portanto, se transformou em uma “comunidade daqueles que estão sem uma comunidade” (expressão que cito de memória e sem saber hoje se ela é de Bataille ou de Blanchot; eu decidi escrever estas linhas sem retornar aos textos, deixando aqui o espaço a única memória que pode restaurar o movimento, logo, seguido e impresso em mim: reler me faria reescrever história).
Assim, se impunha a mim o pensamento que se prolongara através da tradição filosófica, e até a sua superação ou o transbordar “bataillien” (e, anteriormente, naquele de Marx, sem dúvida), uma representação da comunidade em que a reflexão sobre o “totalitarismo” que marcava em todos esses anos, que exigia de todos uma profunda retomada de fôlego - me faria dar esse caráter essencial: a comunidade se realizando como seu próprio trabalho[1]. Como a reflexão difícil, inquieta e em parte infeliz de Bataille convidava em compensação a pensar - com ela mas além dela - era o que me pareceu  capaz de nome-lá decomunidade ociosa”.
A “ociosidade” estivera presente em para Blanchot, logo, mais próximo de Bataille,  da comunidade ou de comunicação chamada de “amizade” e “cuidado infinito” entre um e outro.  Desta muito estranha e silenciosa, com respeito a alguma comunicação secreta, vinha-me uma palavra para tentar lançar os dados novamente para uma retomada do jogo.
Os anos seguintes mostrariam como o tema da comunidade, uma vez repetido, levava o interesse, e como se tornava necessário para tentar caracterizar novamente esta área do ser humano ou do ser que algum projeto comunista ou comunitário não trazia mais. Senão, o caracterizar queria dizer na verdade não mais qualificá-la por si mesma, fora da tautologia, onde a comunidade tinha mérito e valor em si (e provavelmente ainda em um índice mais ou menos cristão: a comunidade primitiva dos apóstolos, a comunidade religiosa, igreja, comunhão - as procedencias de Bataille  aliás foram muito claras a este respeito). Houve, depois dos livros de Blanchot e o meu, uma série de trabalhos tematizando e descrevendo a comunidade; que continuam até hoje, mas num contexto em que se reinventou nos Estados Unidos um “comunitarismo”, que exigia uma outra análise[2].
Blanchot escreveu A Comunidade incofessável em resposta ao artigo que eu  publicara sob o título A Comunidade Ociosa, enquando eu já trabalhava para estendê-la em um livro. Fui tomado por essa resposta, primeiro porque a atenção dada por Blanchot demonstrava a importância do assunto, não só para ele mas, através dele, a todos aqueles que sentiam uma necessidade urgente, até mesmo violenta, recomeçar o que o comunismo ocultara tão poderosamente que o fizesse aparecer: a instância do “comum” – mas também seu enigma ou sua dificuldade, sua característica não dada, não disponível e, de fato, a menos “comum” do mundo ...
Mas eu fiquei tão impressionado com o fato de que a resposta Blanchot era tanto um eco, uma ressonância e uma réplica, uma reserva, e até uma mesmo censura.
Eu nunca esclareci complenamente sobre esta reserva ou esta censura, num texto, nem por mim mesmo, nem na correspondência com Blanchot. Falo aqui pela primeira vez, por ocasião deste prefácio.
     Eu não o fizera pois eu não sentia (e hoje também não) nem capaz, nem autorizado a elucidar segredo que Blanchot claramente identifica pelo seu título - e até mesmo porque no final ele diz “ O incofessável” dado uma morte por amor, um amor dado com a morte (e isso mesmo, precisamente, não é confessável, mesmo quando é dito).
O segredo não confessável, provavelmente, mantem neste (mas não dentro): onde eu pretendia descobrir a “obra” comunitária como a condenação à morte da sociedade [3] e, correlativamente, a necessidade de estabelecer uma comunidade que se recusa a trabalhar, preservando a essência de uma comunicação infinita (comunicando um “sentido ausente”, para falar inda com Blanchot, e a paixão deste ab-senso (ab-sens), ou melhor a paixão em que este ab-senso consiste) - assim, portanto, Blanchot me indica ou melhor me destaca o “inconfessável”. Posto, mas oposto ao ociosa de meu título, este adjetivo propõe pensar que há ociosidade mesmo no trabalho, um trabalho inconfessável.
Ele sugere que (novamente, eu escrevo sem reler os textos, eu escrevo não para resolver, mas para chamar a atenção de futuros leitores) a comunidade daqueles que estão sem uma comunidade (todos nós agora), a comunidade ociosa, não se deixa revelar como o segredo desvendado como do ser-em-comum. E, portanto, não se deixa de se comunicar, embora que ela o seja e sem dúvida ela o é.
Ela agrava ainda mais este secredo, mas ela destaca a impossibilidade, ou antes a interdicção de aceitá-la – ou ainda a inibição, o pudor ou a vergonha de fazê-lo (todos essas ênfases figuram, penso eu no texto de Blanchot).
O que é inconfessável não é indizível. Pelo contrário, o inconfessável não cessa de ser dito ou de se dizer em um silêncio intímo daqueles que poderiam mas não podem mais confessar. Eu imagino que Blanchot queria me intimidar com este silêncio e com o que diz: Ordernar-me e me fazer entrar em minha intimidade, com a mesma intimidade – a intimidade de uma comunicação ou de uma comunidade, uma obra intimamente mais escondida que toda ociosidade, tornando-se possível e necessário, mas não se permitindo dissolver nela. Blanchot me pediu para não permanecer na negação da comunidade comuniel, e ainda sugere que esta negatividade,  na direção de um segredo comum não é um segredo comum.
Eu não fui mais longe, até agora, para recuperar a análise, como poderia fazê-lo em particular através de uma resposta ao texto de Blanchot. Eu não o fiz  em algumas das minhas correspondências com ele, pois as cartas não tinham ainda que se ocupar com outros textos: devem se comunicar entre elas segundo a sua própria ordem. (O que é aliás uma correspondencia? Que tipo de co- ou de com- está engajada?). E eu também não o fiz em um texto, pois ele se só encontrava na ordem do trabalho propriamente dito, eu não continuei nem na inspiração nem no tema da palavracomunidade”
Na verdade, eu prefiri substituí-la gradualmente por expressões desfavoráveis como “estar junto”, “ser-em-comum” e finalmente “ser-com”. Havia razões para estas mudanças e a resignação, ao menos provisória, a essas infelicidades de língua. Por vários lados, eu via suscitar os perigos inerentes à utilização da palavra "comunidade": sua ressonância insuperável cheia, e até mesmo inchada de interioridade, a sua referência inevitavelmente cristã (comunidade espiritual e fraterna, comunial) ou sendo mais abrangente religiosas (comunidade judaica, comunidade de oração, comunidade crentes -  ‘umma), a sua utilização em apoio à supostas “etnias” só poderia ser prevista[4]. Ficou claro que a ênfase sobre um conceito necessário, mas sempre pouco esclarecido, nesta época, com uma ressureição de impulsos comunitários, e às vezes fascinantes. (Em 2001, pode-se ver onde nós  já  estamos e por onde já passamos em questão de impulsos deste gênero).
Por isso, eu preferi concentrar o trabalho em torno docom”: quase indistinguívelco-“ da comunidade, ainda que ele carrega em si uma clara indicação da distância até o centro da proximidade e da intimidade. O “com” é seco e neutro: nem comunhão, nem redução, apenas um lugar de partilha, no máximo um contato: um estar-junto, sem junção. (Nesse sentido, é preciso realizar uma análise mais aprofundada da Mitdasein sofrimento em Heidegger).
Isso me levará, talvez, de volta ao livro de Blanchot. Esta nova edição italiana é a primeira oportunidade. Como se Blanchot, além dos anos anteriores e de outros sinais  trocados, dirigia-me novamente sua advertência: “Cuidado com o inconfessável”. Eu acredito no seguinte: Desconfiar de toda afirmação relacionada a comunidade, essa foi sob o nome de “ociosa”. Ou então, siga de longe a referência desta palavra. O ócio vem depois do trabalho mas, ele vem dele. Não é o suficiente para manter a sociedade trabalhando no sentido, no qual o desejam as Estados - Nações ou – partidos, as Igrejas Universais, autocéfalas, as Assembléias e Conselhos, os Povos, as empresas ou as fraternidades. É necessário também pensar que já houve um “trabalho” da comunidade, uma operação de partilha que precederá toda a existência será sempre singular ou genérica, uma comunicação e um contágio, os quais não se saberia ter, de maneira absolutamente geral, nenhuma presença e nenhum mundo, pois nenhum destes termos carrega consigo a implicação de uma co-existência ou de uma co-propriedade – esta “propriedade” foi o de pertencer do ser-em-comum. Já houve entre nós - todos nós juntos e conjuntos separados a partilha do comum, mas partilhando é o que a faz existir, e então toca a existência, que é a exposição de seu próprio limite. Isso é o que nos faznós”, nos separando e nos aproximando,  criando a proximidade pelo distânciamento entre nós nós” na maior indecisão onde se tem o sujeito coletivo ou plural, condenado (mas é sua grandeza) a jamais encontrar sua própria voz.
Partilhar o que? Sem dúvida alguma coisa - o “inconfessável”, logo – que Blanchot indica pela segunda parte de seu livro[5] e pelo mesmo fato de associar a este livro uma reflexão sobre um texto teórico e, uma outra reflexão sobre uma história de amor e de morte[6]. Em ambos os casos, Blanchot escreve em relação a estes dois textos. Ele os distingue, mas me pareceu, como dois textos dos quais permanecia uma consideração negativa ou em vazia do “ócio”, ao passo que o outro daria acesso à uma comunidade  não “trabalhadora” também, mas operada em segredo (o inconfessável) pela partilha de um experiência de limites: a experiência de amor e de morte, da vida exposta aos seus limites.
Talvez, ele diz - é uma releitura que deve pesquisar – que estes dois acessos à essencia sem a essencia da “comunidade” se cruzam em algum ponto entre os duas partes  do livro, como entre a ordem política-social e a ordem passional-íntima. Em algum parte precisaria pensar o enigma da intensidade, do ímpeto e  de perda, ou abandono, que permite ás vezes existência plural (nascimento, separação, oposição) e da singularidade (morte, amor). Mas ainda assim o inconfessável está envolvido no nascimento e na morte, no amor e na guerra.
O inconfessável é um segredo vergonhoso.  É  vergonhoso porque envolve, em duas figuras possíveis - da soberania e da intimidade - uma paixão que só pode ser exposta com o inconfessável em geral: a confissão seria insuportável, ao mesmo tempo em que destruiria vigor desta paixão. No entanto, sem ela nós já tínhamos desistido de qualquer sorte de estar-juntos, isto é, de ser mais nada. Nós renunciaríamos aquilo que, de acordo com a ordem de uma soberania e de uma intimidade recudas na discrição sem na verdade, nos trazer ao mundo. Pois o que nos traz ao mundo,  é também o que nos leva imediatamente para os extremos de separação, do finito, e do encontro do infinito, onde cada um falha ao entrar em contato com os outros (isto inclui também o encontro consigo mesmo) e do mundo como os outros. O que nos traz ao mundo dividido imediatamente o distiuiu de toda unidade fosse a primeira ou última.
“Inconfessável” é uma palavra que mistura aqui, o que não se pode discernir, a falta de pudor e o pudor. A falta de pudor declara um secreto, o pudor declara que o secreto permanecerá secreto.
O que é calado desta maneira é sabido pelo o que se cala. Mas esse saber não é comunicado, sendo ele próprio ao mesmo tempo o saber da comunicação, do qual a lei não deve mais ser de não se comunicar, porque ela não é uma ordem do comunicável, sem ser nem por isso ineficaz: mas que se abre toda palavra.
Neste ponto, eu concluirei associando o evento que se espalha hoje (repito, Outubro de 2001) através do mundo, mais particularmente do mundo ocidental e em suas margens, suas fronteiras internas e externas (se ainda há fronteiras externas), tendo todos os traços de um ímpeto passional. Ele tem em si todas as figuras da paixão - seja de Deus Todo-Poderoso ou de uma Liberdade, aliás, não menos teúrgica – recuperam e  revelam suas expressões confrontadas, tudo o que sabemos sobre extorsões, explorações, manipulações que exibe o movimento atual do mundo. Mas não o suficiente para remover as máscaras, embora isto fosse necessário. É necessário considerar também que estas figuras passionais não aparecem ao acaso para ocupar um lugar vazio: esse lugar é o de uma verdadeira comunidade. O apelo a um deus irado, ou a afirmação “In God we trust” demonstra de modo simétrico uma necessidade, um desejo, uma agonia de estar-junto. Eles formam novamente uma obra às vezes, um gesto heróico, um espetáculo impressionante, a circulação insaciável. Ao fazê-lo, asseguram revelar o segredo enquanto mantém o seu brilho. Na verdade, eles mascaram o segredo, e é precisamente sob o nome confessável de “Deus”. Faz nos pensar: sem um deus, nem mestre, sem substância comum, qual é o segredo da comunidade, ou do ser-com?
Nós ainda não pensamos profundamente o ócio da comunidade, em que consiste a possibilidade de compartilhar um segredo, sem divulgá-lo: compartilhá-lo precisamente em nós, divulgando-o a nós mesmos.
Diante as monstruosidades do pensamento (ou “ideologia”), que se confrontam por nada menos monstruoso que o jogo do poder e do lucro, a tarefa aqui é ousar pensar o impensável, o indetermindado,  intratável do ser-com sem submetê-loa nenhuma hipóstase. Esta não é uma tarefa política nem econômica, é ainda mais séria essa ordem. Não estamos em uma “guerra de civilizações”, nós estamos em uma ruptura interna da civilização, única que civiliza e barbariza o mundo num mesmo movimento, pois ela  que tocou a extremidade de sua própria lógica: ela levou o mundo todo para si mesma, ela levou a comunidade humana toda a si mesma e a seu segredo e sem deus e sem sem valor comercial. É por isso que devemos trabalhar: com a comunidade confrontada a si mesma, a nós nos confrontando a nós mesmo, o com confrontando o com. Confronto, sem dúvida, pertence essencialmente à comunidade: trata-se às vezes de um confronto e de uma oposição, de uma vinda ao encontro de si mesmo para se desafiar e provar a si mesmo, para se dividir em seu ser uma lacuna que é também a condição deste ser. ­(15 de Outubro de 2001).