sexta-feira, 16 de setembro de 2011

C O M U N I D A D E * C O N F R O N T A D A (cont.)

Mas, de um jeito ou de outro, comunidade de intimidade  intensa ou sociedade de  um vínculo homogêneo e amplo, o ponto de referência de Bataille me parecera assim: a posição desejada (que atinge o amor  ou que renuncia a sociedade) de uma comunidade como assunção no interior, como a presença em si mesma de uma unidade realizada. Parecia-me, portanto, haver a necessidade de se analisar este pressuposto da comunidade fora claramente designada como o impossível e, portanto, se transformou em uma “comunidade daqueles que estão sem uma comunidade” (expressão que cito de memória e sem saber hoje se ela é de Bataille ou de Blanchot; eu decidi escrever estas linhas sem retornar aos textos, deixando aqui o espaço a única memória que pode restaurar o movimento, logo, seguido e impresso em mim: reler me faria reescrever história).
Assim, se impunha a mim o pensamento que se prolongara através da tradição filosófica, e até a sua superação ou o transbordar “bataillien” (e, anteriormente, naquele de Marx, sem dúvida), uma representação da comunidade em que a reflexão sobre o “totalitarismo” que marcava em todos esses anos, que exigia de todos uma profunda retomada de fôlego - me faria dar esse caráter essencial: a comunidade se realizando como seu próprio trabalho[1]. Como a reflexão difícil, inquieta e em parte infeliz de Bataille convidava em compensação a pensar - com ela mas além dela - era o que me pareceu  capaz de nome-lá decomunidade ociosa”.
A “ociosidade” estivera presente em para Blanchot, logo, mais próximo de Bataille,  da comunidade ou de comunicação chamada de “amizade” e “cuidado infinito” entre um e outro.  Desta muito estranha e silenciosa, com respeito a alguma comunicação secreta, vinha-me uma palavra para tentar lançar os dados novamente para uma retomada do jogo.
Os anos seguintes mostrariam como o tema da comunidade, uma vez repetido, levava o interesse, e como se tornava necessário para tentar caracterizar novamente esta área do ser humano ou do ser que algum projeto comunista ou comunitário não trazia mais. Senão, o caracterizar queria dizer na verdade não mais qualificá-la por si mesma, fora da tautologia, onde a comunidade tinha mérito e valor em si (e provavelmente ainda em um índice mais ou menos cristão: a comunidade primitiva dos apóstolos, a comunidade religiosa, igreja, comunhão - as procedencias de Bataille  aliás foram muito claras a este respeito). Houve, depois dos livros de Blanchot e o meu, uma série de trabalhos tematizando e descrevendo a comunidade; que continuam até hoje, mas num contexto em que se reinventou nos Estados Unidos um “comunitarismo”, que exigia uma outra análise[2].
Blanchot escreveu A Comunidade incofessável em resposta ao artigo que eu  publicara sob o título A Comunidade Ociosa, enquando eu já trabalhava para estendê-la em um livro. Fui tomado por essa resposta, primeiro porque a atenção dada por Blanchot demonstrava a importância do assunto, não só para ele mas, através dele, a todos aqueles que sentiam uma necessidade urgente, até mesmo violenta, recomeçar o que o comunismo ocultara tão poderosamente que o fizesse aparecer: a instância do “comum” – mas também seu enigma ou sua dificuldade, sua característica não dada, não disponível e, de fato, a menos “comum” do mundo ...
Mas eu fiquei tão impressionado com o fato de que a resposta Blanchot era tanto um eco, uma ressonância e uma réplica, uma reserva, e até uma mesmo censura.
Eu nunca esclareci complenamente sobre esta reserva ou esta censura, num texto, nem por mim mesmo, nem na correspondência com Blanchot. Falo aqui pela primeira vez, por ocasião deste prefácio.
     Eu não o fizera pois eu não sentia (e hoje também não) nem capaz, nem autorizado a elucidar segredo que Blanchot claramente identifica pelo seu título - e até mesmo porque no final ele diz “ O incofessável” dado uma morte por amor, um amor dado com a morte (e isso mesmo, precisamente, não é confessável, mesmo quando é dito).
O segredo não confessável, provavelmente, mantem neste (mas não dentro): onde eu pretendia descobrir a “obra” comunitária como a condenação à morte da sociedade [3] e, correlativamente, a necessidade de estabelecer uma comunidade que se recusa a trabalhar, preservando a essência de uma comunicação infinita (comunicando um “sentido ausente”, para falar inda com Blanchot, e a paixão deste ab-senso (ab-sens), ou melhor a paixão em que este ab-senso consiste) - assim, portanto, Blanchot me indica ou melhor me destaca o “inconfessável”. Posto, mas oposto ao ociosa de meu título, este adjetivo propõe pensar que há ociosidade mesmo no trabalho, um trabalho inconfessável.
Ele sugere que (novamente, eu escrevo sem reler os textos, eu escrevo não para resolver, mas para chamar a atenção de futuros leitores) a comunidade daqueles que estão sem uma comunidade (todos nós agora), a comunidade ociosa, não se deixa revelar como o segredo desvendado como do ser-em-comum. E, portanto, não se deixa de se comunicar, embora que ela o seja e sem dúvida ela o é.
Ela agrava ainda mais este secredo, mas ela destaca a impossibilidade, ou antes a interdicção de aceitá-la – ou ainda a inibição, o pudor ou a vergonha de fazê-lo (todos essas ênfases figuram, penso eu no texto de Blanchot).
O que é inconfessável não é indizível. Pelo contrário, o inconfessável não cessa de ser dito ou de se dizer em um silêncio intímo daqueles que poderiam mas não podem mais confessar. Eu imagino que Blanchot queria me intimidar com este silêncio e com o que diz: Ordernar-me e me fazer entrar em minha intimidade, com a mesma intimidade – a intimidade de uma comunicação ou de uma comunidade, uma obra intimamente mais escondida que toda ociosidade, tornando-se possível e necessário, mas não se permitindo dissolver nela. Blanchot me pediu para não permanecer na negação da comunidade comuniel, e ainda sugere que esta negatividade,  na direção de um segredo comum não é um segredo comum.
Eu não fui mais longe, até agora, para recuperar a análise, como poderia fazê-lo em particular através de uma resposta ao texto de Blanchot. Eu não o fiz  em algumas das minhas correspondências com ele, pois as cartas não tinham ainda que se ocupar com outros textos: devem se comunicar entre elas segundo a sua própria ordem. (O que é aliás uma correspondencia? Que tipo de co- ou de com- está engajada?). E eu também não o fiz em um texto, pois ele se só encontrava na ordem do trabalho propriamente dito, eu não continuei nem na inspiração nem no tema da palavracomunidade”
Na verdade, eu prefiri substituí-la gradualmente por expressões desfavoráveis como “estar junto”, “ser-em-comum” e finalmente “ser-com”. Havia razões para estas mudanças e a resignação, ao menos provisória, a essas infelicidades de língua. Por vários lados, eu via suscitar os perigos inerentes à utilização da palavra "comunidade": sua ressonância insuperável cheia, e até mesmo inchada de interioridade, a sua referência inevitavelmente cristã (comunidade espiritual e fraterna, comunial) ou sendo mais abrangente religiosas (comunidade judaica, comunidade de oração, comunidade crentes -  ‘umma), a sua utilização em apoio à supostas “etnias” só poderia ser prevista[4]. Ficou claro que a ênfase sobre um conceito necessário, mas sempre pouco esclarecido, nesta época, com uma ressureição de impulsos comunitários, e às vezes fascinantes. (Em 2001, pode-se ver onde nós  já  estamos e por onde já passamos em questão de impulsos deste gênero).
Por isso, eu preferi concentrar o trabalho em torno docom”: quase indistinguívelco-“ da comunidade, ainda que ele carrega em si uma clara indicação da distância até o centro da proximidade e da intimidade. O “com” é seco e neutro: nem comunhão, nem redução, apenas um lugar de partilha, no máximo um contato: um estar-junto, sem junção. (Nesse sentido, é preciso realizar uma análise mais aprofundada da Mitdasein sofrimento em Heidegger).
Isso me levará, talvez, de volta ao livro de Blanchot. Esta nova edição italiana é a primeira oportunidade. Como se Blanchot, além dos anos anteriores e de outros sinais  trocados, dirigia-me novamente sua advertência: “Cuidado com o inconfessável”. Eu acredito no seguinte: Desconfiar de toda afirmação relacionada a comunidade, essa foi sob o nome de “ociosa”. Ou então, siga de longe a referência desta palavra. O ócio vem depois do trabalho mas, ele vem dele. Não é o suficiente para manter a sociedade trabalhando no sentido, no qual o desejam as Estados - Nações ou – partidos, as Igrejas Universais, autocéfalas, as Assembléias e Conselhos, os Povos, as empresas ou as fraternidades. É necessário também pensar que já houve um “trabalho” da comunidade, uma operação de partilha que precederá toda a existência será sempre singular ou genérica, uma comunicação e um contágio, os quais não se saberia ter, de maneira absolutamente geral, nenhuma presença e nenhum mundo, pois nenhum destes termos carrega consigo a implicação de uma co-existência ou de uma co-propriedade – esta “propriedade” foi o de pertencer do ser-em-comum. Já houve entre nós - todos nós juntos e conjuntos separados a partilha do comum, mas partilhando é o que a faz existir, e então toca a existência, que é a exposição de seu próprio limite. Isso é o que nos faznós”, nos separando e nos aproximando,  criando a proximidade pelo distânciamento entre nós nós” na maior indecisão onde se tem o sujeito coletivo ou plural, condenado (mas é sua grandeza) a jamais encontrar sua própria voz.
Partilhar o que? Sem dúvida alguma coisa - o “inconfessável”, logo – que Blanchot indica pela segunda parte de seu livro[5] e pelo mesmo fato de associar a este livro uma reflexão sobre um texto teórico e, uma outra reflexão sobre uma história de amor e de morte[6]. Em ambos os casos, Blanchot escreve em relação a estes dois textos. Ele os distingue, mas me pareceu, como dois textos dos quais permanecia uma consideração negativa ou em vazia do “ócio”, ao passo que o outro daria acesso à uma comunidade  não “trabalhadora” também, mas operada em segredo (o inconfessável) pela partilha de um experiência de limites: a experiência de amor e de morte, da vida exposta aos seus limites.
Talvez, ele diz - é uma releitura que deve pesquisar – que estes dois acessos à essencia sem a essencia da “comunidade” se cruzam em algum ponto entre os duas partes  do livro, como entre a ordem política-social e a ordem passional-íntima. Em algum parte precisaria pensar o enigma da intensidade, do ímpeto e  de perda, ou abandono, que permite ás vezes existência plural (nascimento, separação, oposição) e da singularidade (morte, amor). Mas ainda assim o inconfessável está envolvido no nascimento e na morte, no amor e na guerra.
O inconfessável é um segredo vergonhoso.  É  vergonhoso porque envolve, em duas figuras possíveis - da soberania e da intimidade - uma paixão que só pode ser exposta com o inconfessável em geral: a confissão seria insuportável, ao mesmo tempo em que destruiria vigor desta paixão. No entanto, sem ela nós já tínhamos desistido de qualquer sorte de estar-juntos, isto é, de ser mais nada. Nós renunciaríamos aquilo que, de acordo com a ordem de uma soberania e de uma intimidade recudas na discrição sem na verdade, nos trazer ao mundo. Pois o que nos traz ao mundo,  é também o que nos leva imediatamente para os extremos de separação, do finito, e do encontro do infinito, onde cada um falha ao entrar em contato com os outros (isto inclui também o encontro consigo mesmo) e do mundo como os outros. O que nos traz ao mundo dividido imediatamente o distiuiu de toda unidade fosse a primeira ou última.
“Inconfessável” é uma palavra que mistura aqui, o que não se pode discernir, a falta de pudor e o pudor. A falta de pudor declara um secreto, o pudor declara que o secreto permanecerá secreto.
O que é calado desta maneira é sabido pelo o que se cala. Mas esse saber não é comunicado, sendo ele próprio ao mesmo tempo o saber da comunicação, do qual a lei não deve mais ser de não se comunicar, porque ela não é uma ordem do comunicável, sem ser nem por isso ineficaz: mas que se abre toda palavra.
Neste ponto, eu concluirei associando o evento que se espalha hoje (repito, Outubro de 2001) através do mundo, mais particularmente do mundo ocidental e em suas margens, suas fronteiras internas e externas (se ainda há fronteiras externas), tendo todos os traços de um ímpeto passional. Ele tem em si todas as figuras da paixão - seja de Deus Todo-Poderoso ou de uma Liberdade, aliás, não menos teúrgica – recuperam e  revelam suas expressões confrontadas, tudo o que sabemos sobre extorsões, explorações, manipulações que exibe o movimento atual do mundo. Mas não o suficiente para remover as máscaras, embora isto fosse necessário. É necessário considerar também que estas figuras passionais não aparecem ao acaso para ocupar um lugar vazio: esse lugar é o de uma verdadeira comunidade. O apelo a um deus irado, ou a afirmação “In God we trust” demonstra de modo simétrico uma necessidade, um desejo, uma agonia de estar-junto. Eles formam novamente uma obra às vezes, um gesto heróico, um espetáculo impressionante, a circulação insaciável. Ao fazê-lo, asseguram revelar o segredo enquanto mantém o seu brilho. Na verdade, eles mascaram o segredo, e é precisamente sob o nome confessável de “Deus”. Faz nos pensar: sem um deus, nem mestre, sem substância comum, qual é o segredo da comunidade, ou do ser-com?
Nós ainda não pensamos profundamente o ócio da comunidade, em que consiste a possibilidade de compartilhar um segredo, sem divulgá-lo: compartilhá-lo precisamente em nós, divulgando-o a nós mesmos.
Diante as monstruosidades do pensamento (ou “ideologia”), que se confrontam por nada menos monstruoso que o jogo do poder e do lucro, a tarefa aqui é ousar pensar o impensável, o indetermindado,  intratável do ser-com sem submetê-loa nenhuma hipóstase. Esta não é uma tarefa política nem econômica, é ainda mais séria essa ordem. Não estamos em uma “guerra de civilizações”, nós estamos em uma ruptura interna da civilização, única que civiliza e barbariza o mundo num mesmo movimento, pois ela  que tocou a extremidade de sua própria lógica: ela levou o mundo todo para si mesma, ela levou a comunidade humana toda a si mesma e a seu segredo e sem deus e sem sem valor comercial. É por isso que devemos trabalhar: com a comunidade confrontada a si mesma, a nós nos confrontando a nós mesmo, o com confrontando o com. Confronto, sem dúvida, pertence essencialmente à comunidade: trata-se às vezes de um confronto e de uma oposição, de uma vinda ao encontro de si mesmo para se desafiar e provar a si mesmo, para se dividir em seu ser uma lacuna que é também a condição deste ser. ­(15 de Outubro de 2001).

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