sexta-feira, 16 de setembro de 2011

C O M U N I D A D E * C O N F R O N T A D A (cont.)

Mas, de um jeito ou de outro, comunidade de intimidade  intensa ou sociedade de  um vínculo homogêneo e amplo, o ponto de referência de Bataille me parecera assim: a posição desejada (que atinge o amor  ou que renuncia a sociedade) de uma comunidade como assunção no interior, como a presença em si mesma de uma unidade realizada. Parecia-me, portanto, haver a necessidade de se analisar este pressuposto da comunidade fora claramente designada como o impossível e, portanto, se transformou em uma “comunidade daqueles que estão sem uma comunidade” (expressão que cito de memória e sem saber hoje se ela é de Bataille ou de Blanchot; eu decidi escrever estas linhas sem retornar aos textos, deixando aqui o espaço a única memória que pode restaurar o movimento, logo, seguido e impresso em mim: reler me faria reescrever história).
Assim, se impunha a mim o pensamento que se prolongara através da tradição filosófica, e até a sua superação ou o transbordar “bataillien” (e, anteriormente, naquele de Marx, sem dúvida), uma representação da comunidade em que a reflexão sobre o “totalitarismo” que marcava em todos esses anos, que exigia de todos uma profunda retomada de fôlego - me faria dar esse caráter essencial: a comunidade se realizando como seu próprio trabalho[1]. Como a reflexão difícil, inquieta e em parte infeliz de Bataille convidava em compensação a pensar - com ela mas além dela - era o que me pareceu  capaz de nome-lá decomunidade ociosa”.
A “ociosidade” estivera presente em para Blanchot, logo, mais próximo de Bataille,  da comunidade ou de comunicação chamada de “amizade” e “cuidado infinito” entre um e outro.  Desta muito estranha e silenciosa, com respeito a alguma comunicação secreta, vinha-me uma palavra para tentar lançar os dados novamente para uma retomada do jogo.
Os anos seguintes mostrariam como o tema da comunidade, uma vez repetido, levava o interesse, e como se tornava necessário para tentar caracterizar novamente esta área do ser humano ou do ser que algum projeto comunista ou comunitário não trazia mais. Senão, o caracterizar queria dizer na verdade não mais qualificá-la por si mesma, fora da tautologia, onde a comunidade tinha mérito e valor em si (e provavelmente ainda em um índice mais ou menos cristão: a comunidade primitiva dos apóstolos, a comunidade religiosa, igreja, comunhão - as procedencias de Bataille  aliás foram muito claras a este respeito). Houve, depois dos livros de Blanchot e o meu, uma série de trabalhos tematizando e descrevendo a comunidade; que continuam até hoje, mas num contexto em que se reinventou nos Estados Unidos um “comunitarismo”, que exigia uma outra análise[2].
Blanchot escreveu A Comunidade incofessável em resposta ao artigo que eu  publicara sob o título A Comunidade Ociosa, enquando eu já trabalhava para estendê-la em um livro. Fui tomado por essa resposta, primeiro porque a atenção dada por Blanchot demonstrava a importância do assunto, não só para ele mas, através dele, a todos aqueles que sentiam uma necessidade urgente, até mesmo violenta, recomeçar o que o comunismo ocultara tão poderosamente que o fizesse aparecer: a instância do “comum” – mas também seu enigma ou sua dificuldade, sua característica não dada, não disponível e, de fato, a menos “comum” do mundo ...
Mas eu fiquei tão impressionado com o fato de que a resposta Blanchot era tanto um eco, uma ressonância e uma réplica, uma reserva, e até uma mesmo censura.
Eu nunca esclareci complenamente sobre esta reserva ou esta censura, num texto, nem por mim mesmo, nem na correspondência com Blanchot. Falo aqui pela primeira vez, por ocasião deste prefácio.
     Eu não o fizera pois eu não sentia (e hoje também não) nem capaz, nem autorizado a elucidar segredo que Blanchot claramente identifica pelo seu título - e até mesmo porque no final ele diz “ O incofessável” dado uma morte por amor, um amor dado com a morte (e isso mesmo, precisamente, não é confessável, mesmo quando é dito).
O segredo não confessável, provavelmente, mantem neste (mas não dentro): onde eu pretendia descobrir a “obra” comunitária como a condenação à morte da sociedade [3] e, correlativamente, a necessidade de estabelecer uma comunidade que se recusa a trabalhar, preservando a essência de uma comunicação infinita (comunicando um “sentido ausente”, para falar inda com Blanchot, e a paixão deste ab-senso (ab-sens), ou melhor a paixão em que este ab-senso consiste) - assim, portanto, Blanchot me indica ou melhor me destaca o “inconfessável”. Posto, mas oposto ao ociosa de meu título, este adjetivo propõe pensar que há ociosidade mesmo no trabalho, um trabalho inconfessável.
Ele sugere que (novamente, eu escrevo sem reler os textos, eu escrevo não para resolver, mas para chamar a atenção de futuros leitores) a comunidade daqueles que estão sem uma comunidade (todos nós agora), a comunidade ociosa, não se deixa revelar como o segredo desvendado como do ser-em-comum. E, portanto, não se deixa de se comunicar, embora que ela o seja e sem dúvida ela o é.
Ela agrava ainda mais este secredo, mas ela destaca a impossibilidade, ou antes a interdicção de aceitá-la – ou ainda a inibição, o pudor ou a vergonha de fazê-lo (todos essas ênfases figuram, penso eu no texto de Blanchot).
O que é inconfessável não é indizível. Pelo contrário, o inconfessável não cessa de ser dito ou de se dizer em um silêncio intímo daqueles que poderiam mas não podem mais confessar. Eu imagino que Blanchot queria me intimidar com este silêncio e com o que diz: Ordernar-me e me fazer entrar em minha intimidade, com a mesma intimidade – a intimidade de uma comunicação ou de uma comunidade, uma obra intimamente mais escondida que toda ociosidade, tornando-se possível e necessário, mas não se permitindo dissolver nela. Blanchot me pediu para não permanecer na negação da comunidade comuniel, e ainda sugere que esta negatividade,  na direção de um segredo comum não é um segredo comum.
Eu não fui mais longe, até agora, para recuperar a análise, como poderia fazê-lo em particular através de uma resposta ao texto de Blanchot. Eu não o fiz  em algumas das minhas correspondências com ele, pois as cartas não tinham ainda que se ocupar com outros textos: devem se comunicar entre elas segundo a sua própria ordem. (O que é aliás uma correspondencia? Que tipo de co- ou de com- está engajada?). E eu também não o fiz em um texto, pois ele se só encontrava na ordem do trabalho propriamente dito, eu não continuei nem na inspiração nem no tema da palavracomunidade”
Na verdade, eu prefiri substituí-la gradualmente por expressões desfavoráveis como “estar junto”, “ser-em-comum” e finalmente “ser-com”. Havia razões para estas mudanças e a resignação, ao menos provisória, a essas infelicidades de língua. Por vários lados, eu via suscitar os perigos inerentes à utilização da palavra "comunidade": sua ressonância insuperável cheia, e até mesmo inchada de interioridade, a sua referência inevitavelmente cristã (comunidade espiritual e fraterna, comunial) ou sendo mais abrangente religiosas (comunidade judaica, comunidade de oração, comunidade crentes -  ‘umma), a sua utilização em apoio à supostas “etnias” só poderia ser prevista[4]. Ficou claro que a ênfase sobre um conceito necessário, mas sempre pouco esclarecido, nesta época, com uma ressureição de impulsos comunitários, e às vezes fascinantes. (Em 2001, pode-se ver onde nós  já  estamos e por onde já passamos em questão de impulsos deste gênero).
Por isso, eu preferi concentrar o trabalho em torno docom”: quase indistinguívelco-“ da comunidade, ainda que ele carrega em si uma clara indicação da distância até o centro da proximidade e da intimidade. O “com” é seco e neutro: nem comunhão, nem redução, apenas um lugar de partilha, no máximo um contato: um estar-junto, sem junção. (Nesse sentido, é preciso realizar uma análise mais aprofundada da Mitdasein sofrimento em Heidegger).
Isso me levará, talvez, de volta ao livro de Blanchot. Esta nova edição italiana é a primeira oportunidade. Como se Blanchot, além dos anos anteriores e de outros sinais  trocados, dirigia-me novamente sua advertência: “Cuidado com o inconfessável”. Eu acredito no seguinte: Desconfiar de toda afirmação relacionada a comunidade, essa foi sob o nome de “ociosa”. Ou então, siga de longe a referência desta palavra. O ócio vem depois do trabalho mas, ele vem dele. Não é o suficiente para manter a sociedade trabalhando no sentido, no qual o desejam as Estados - Nações ou – partidos, as Igrejas Universais, autocéfalas, as Assembléias e Conselhos, os Povos, as empresas ou as fraternidades. É necessário também pensar que já houve um “trabalho” da comunidade, uma operação de partilha que precederá toda a existência será sempre singular ou genérica, uma comunicação e um contágio, os quais não se saberia ter, de maneira absolutamente geral, nenhuma presença e nenhum mundo, pois nenhum destes termos carrega consigo a implicação de uma co-existência ou de uma co-propriedade – esta “propriedade” foi o de pertencer do ser-em-comum. Já houve entre nós - todos nós juntos e conjuntos separados a partilha do comum, mas partilhando é o que a faz existir, e então toca a existência, que é a exposição de seu próprio limite. Isso é o que nos faznós”, nos separando e nos aproximando,  criando a proximidade pelo distânciamento entre nós nós” na maior indecisão onde se tem o sujeito coletivo ou plural, condenado (mas é sua grandeza) a jamais encontrar sua própria voz.
Partilhar o que? Sem dúvida alguma coisa - o “inconfessável”, logo – que Blanchot indica pela segunda parte de seu livro[5] e pelo mesmo fato de associar a este livro uma reflexão sobre um texto teórico e, uma outra reflexão sobre uma história de amor e de morte[6]. Em ambos os casos, Blanchot escreve em relação a estes dois textos. Ele os distingue, mas me pareceu, como dois textos dos quais permanecia uma consideração negativa ou em vazia do “ócio”, ao passo que o outro daria acesso à uma comunidade  não “trabalhadora” também, mas operada em segredo (o inconfessável) pela partilha de um experiência de limites: a experiência de amor e de morte, da vida exposta aos seus limites.
Talvez, ele diz - é uma releitura que deve pesquisar – que estes dois acessos à essencia sem a essencia da “comunidade” se cruzam em algum ponto entre os duas partes  do livro, como entre a ordem política-social e a ordem passional-íntima. Em algum parte precisaria pensar o enigma da intensidade, do ímpeto e  de perda, ou abandono, que permite ás vezes existência plural (nascimento, separação, oposição) e da singularidade (morte, amor). Mas ainda assim o inconfessável está envolvido no nascimento e na morte, no amor e na guerra.
O inconfessável é um segredo vergonhoso.  É  vergonhoso porque envolve, em duas figuras possíveis - da soberania e da intimidade - uma paixão que só pode ser exposta com o inconfessável em geral: a confissão seria insuportável, ao mesmo tempo em que destruiria vigor desta paixão. No entanto, sem ela nós já tínhamos desistido de qualquer sorte de estar-juntos, isto é, de ser mais nada. Nós renunciaríamos aquilo que, de acordo com a ordem de uma soberania e de uma intimidade recudas na discrição sem na verdade, nos trazer ao mundo. Pois o que nos traz ao mundo,  é também o que nos leva imediatamente para os extremos de separação, do finito, e do encontro do infinito, onde cada um falha ao entrar em contato com os outros (isto inclui também o encontro consigo mesmo) e do mundo como os outros. O que nos traz ao mundo dividido imediatamente o distiuiu de toda unidade fosse a primeira ou última.
“Inconfessável” é uma palavra que mistura aqui, o que não se pode discernir, a falta de pudor e o pudor. A falta de pudor declara um secreto, o pudor declara que o secreto permanecerá secreto.
O que é calado desta maneira é sabido pelo o que se cala. Mas esse saber não é comunicado, sendo ele próprio ao mesmo tempo o saber da comunicação, do qual a lei não deve mais ser de não se comunicar, porque ela não é uma ordem do comunicável, sem ser nem por isso ineficaz: mas que se abre toda palavra.
Neste ponto, eu concluirei associando o evento que se espalha hoje (repito, Outubro de 2001) através do mundo, mais particularmente do mundo ocidental e em suas margens, suas fronteiras internas e externas (se ainda há fronteiras externas), tendo todos os traços de um ímpeto passional. Ele tem em si todas as figuras da paixão - seja de Deus Todo-Poderoso ou de uma Liberdade, aliás, não menos teúrgica – recuperam e  revelam suas expressões confrontadas, tudo o que sabemos sobre extorsões, explorações, manipulações que exibe o movimento atual do mundo. Mas não o suficiente para remover as máscaras, embora isto fosse necessário. É necessário considerar também que estas figuras passionais não aparecem ao acaso para ocupar um lugar vazio: esse lugar é o de uma verdadeira comunidade. O apelo a um deus irado, ou a afirmação “In God we trust” demonstra de modo simétrico uma necessidade, um desejo, uma agonia de estar-junto. Eles formam novamente uma obra às vezes, um gesto heróico, um espetáculo impressionante, a circulação insaciável. Ao fazê-lo, asseguram revelar o segredo enquanto mantém o seu brilho. Na verdade, eles mascaram o segredo, e é precisamente sob o nome confessável de “Deus”. Faz nos pensar: sem um deus, nem mestre, sem substância comum, qual é o segredo da comunidade, ou do ser-com?
Nós ainda não pensamos profundamente o ócio da comunidade, em que consiste a possibilidade de compartilhar um segredo, sem divulgá-lo: compartilhá-lo precisamente em nós, divulgando-o a nós mesmos.
Diante as monstruosidades do pensamento (ou “ideologia”), que se confrontam por nada menos monstruoso que o jogo do poder e do lucro, a tarefa aqui é ousar pensar o impensável, o indetermindado,  intratável do ser-com sem submetê-loa nenhuma hipóstase. Esta não é uma tarefa política nem econômica, é ainda mais séria essa ordem. Não estamos em uma “guerra de civilizações”, nós estamos em uma ruptura interna da civilização, única que civiliza e barbariza o mundo num mesmo movimento, pois ela  que tocou a extremidade de sua própria lógica: ela levou o mundo todo para si mesma, ela levou a comunidade humana toda a si mesma e a seu segredo e sem deus e sem sem valor comercial. É por isso que devemos trabalhar: com a comunidade confrontada a si mesma, a nós nos confrontando a nós mesmo, o com confrontando o com. Confronto, sem dúvida, pertence essencialmente à comunidade: trata-se às vezes de um confronto e de uma oposição, de uma vinda ao encontro de si mesmo para se desafiar e provar a si mesmo, para se dividir em seu ser uma lacuna que é também a condição deste ser. ­(15 de Outubro de 2001).

terça-feira, 6 de setembro de 2011

C O M U N I D A D E * C O N F R O N T A D A

de NANCY, J-L
Tradução de Eduardo Yuji Yamamoto

     O estado presente do mundo não é de uma guerra entre civilizações. É uma guerra civil: é a guerra interna de uma cidade, de uma civilização, de uma cidadania que está se desdobrando até os limites do mundo e até a extremidade de seus próprios conceitos. Na extremidade, um conceito se quebra, uma figura distendida se explode, uma ruptura surge.
     Não é também mais uma guerra entre religiões, ou uma guerra dita de religiões, é uma guerra interna do monoteísmo, esquema religioso do Ocidente que em si mesmo traz uma divisão em seus limites e em suas extremidades: do Ocidente ao Oriente até a ruptura no centro do poder divino. Logo, o Ocidente seria o enfraquecimento do divino, em todas as formas do monoteísmo seja pelo ateísmo ou pelo fanatismo.
     O que acontece conosco é o enfraquecimento do pensamento de um “Ser” e de um destino único do mundo: isto se enfraquece em uma ausência de destino, em uma expansão ilimitada da equivalência generalizada ou, em contrapartida, nos sobressaltos violentos que reafirmam a onipotência e a onipresença de um “Ser” transformado – ou retransformado – em sua própria monstruosidade[1]. Como, enfim, ser sério, absolutamente e incondicionalmente ateus capazes de ter razão e verdade? Como, não sair da religião – pois no fundo, e isto é fato, as maldições dos loucos não podem nada (elas têm o mesmo indício, como “Deus” gravado na nota de dólar) – mas ao sair deste pensamento unificado, o que resta é o nosso pensamento (a história, a ciências, o Capital, o Homem e/ou a sua Nulidade...). Enfim, como ir ao fim do monoteísmo e de seu ateísmo constitutivo (ou poderíamos chamar de seu “ausenteísmo”), para compreendê-lo, por trás de sua fraqueza, o que seria capaz de extrair do nilismo, de seu interior? Como pensar o “nilismo” sem retornar à monstruosidade onipresente e onipotente?
A ruptura formada é a da razão, da verdade ou do valor. Todas as formas de rompimento, de ruptura social, econômica, política, cultural tem em si a condição de possibilidade e seu esquema fundamental. Não se pode ignorar: O desafio primordial deve ser tido como um desafio de pensamento, inclusive no que se refere às suas implicações materiais (a morte por AIDS na África ou a miséria na Europa, as lutas pelo poder nos países Árabes, por exemplo, dentro de uma centena de outros exemplos). A estratégia política e militar é necessária, o equilíbrio econômico e social também, a luta pela justiça, a resistência e a revolta também são necessárias. Mas é preciso refletir sobre um mundo que deixa de maneira lenta e ao mesmo tempo brutal todas as suas definições adquiridas de verdade, razão e valor.
O enorme desequilíbrio econômico, quer dizer o desequilíbrio da vida, da fome, da dignidade, do pensamento é o resultado do desenvolvimento de um mundo que não se reproduz mais (que não acompanha mais nem a sua própria existência, nem a sua própria razão), mas que produz uma falta de limite de sua própria globalização, tal que ela parece implodir ou explodir: pois no centro a falta de limite cruza outro caminho que é a desigualdade do mundo nele mesmo, uma impossibilidade de se dotar de razão, de valor, de verdade, uma precipitação na equivalência geral que torna progressivamente a civilização uma obra morta. Não somente uma forma de civilização, mas a civilização, a história do homem e talvez tenha aquela natureza. E não há outra forma no horizonte, nem nova, nem antiga.
De uma parte à outra se vê cobrir a “ferida” com as “bandagens” habituais: deus ou dinheiro, petróleo ou poder, informação ou encantamento, o que acaba sempre significando uma ou outra forma de onipresença ou onipotência.
Onipotência ou onipresença é sempre o que se requer da comunidade ou o que se vai procurar nela: Supremacia e intimidade, a consciência sem falha e sem aparência. Deseja-se o “espírito” de um “povo” ou a “alma” de uma assembléia de “fiéis”, deseja-se a “identidade” de um “indivíduo” ou sua “propriedade”.
Não basta, e longe disso, de denunciar aqui um imperialismo e ali um integralismo (designações que se pode, aliás, por em quiasmos). Estas denúncias são justas, como é justo denunciar o efeito da exploração e da humilhação de populações inteiras, rendidas e desta forma disponíveis a outras explorações. Mas enfim, desde 1939, as guerras não têm mais lugar como os confrontos no interior de um mundo que lhe dá lugar (mesmo que este lugar seja desastroso): a guerra se tornou a guerra de um mundo que se desmorona, porque ele sente falta de ser ou de fazer o que deve ser: um mundo, quer dizer um espaço de razão, fez a razão perdida ou a verdade vazia[2].
Falar de “razão” e de “verdade” no centro da agitação militar, de cálculos geopolíticos, de sofrimentos, de grotescas hipocrisias o engano não é “idealismo”: é abordar a mesma coisa.
De um lado a outro a ruptura profunda do mundo com o nome de “globalização”, assim a comunidade está separada e confrontada a ela mesma. Anteriormente, as comunidades podiam refletir sobre elas mesmas, distintas e autônomas sem procurar associar-se a uma humanidade genérica. Mas, quando o mundo finito se tornou mundial e o homem finito se tornou humano (é neste sentido também que ele se torna “o último homem”), quando “a” comunidade se põe a hesitar em uma estranha unidade (como se devesse ter só uma essência única do comum), então “a” comunidade compreende que está escancarada – ruptura escancarada sobre a unidade e sobre sua essência ausentes – e ela confronta nela mesma esta ruptura. É a comunidade contra a comunidade, estrangeiro contra estrangeiro e família contra família, ferindo-se a si mesmas sem possibilidade de comunicação nem de comunhão. O monoteísmo se confronta nele mesmo, como o teísmo e como o ateísmo, e por esta razão é o esquema de nossa condição atual.
Que este confronto consigo mesmo pudesse ser uma lei do “ser-em-comum” e sua mesma razão, eis o que está no programa do trabalho do pensamento: que o confronto, compreendendo-se ele mesmo, compreende que a destruição mútua destrói até mesmo a possibilidade de confronto, e com ela a possibilidade do “ser-em-comum” ou do “ser-com”.
Pois o “comum” é o “com”, o “com” designa o espaço sem a onipotência e sem a onipresença. No “com” só pode haver as forças que se confrontam em razão de seu jogo mútuo e as presenças que se afastam por causa do que elas tendem sempre a se tornar outra coisa menos as presenças puras (objetos dados, pessoas conformadas em suas certezas, mundo da inércia e da desordem).
Como tornar capazes de olhar à frente nossa ruptura e nosso conflito, não para assustar, mas para tirar, apesar de tudo, a força de nos confrontar, primeiro conhecendo a causa – a maneira que realmente nos divide – senão o confronto só é um empurrão confuso e cego?
Entretanto, olhar à frente um abismo e confrontar-se através do olhar não são sem comparação, pois sem o olhar do outro nunca se abrirá o insondável: sobre a estranheza absoluta, sobre uma verdade que não se pode confiar, mas a qual é necessário ter.
Tripla estranheza: aquela do outro distanciado, aquela do mesmo retirado, aquela da história pronta versos a inacabada, talvez a insustentável.
É necessário se posicionar contra uma moral altruísta muito citada hipocritamente, para a seriedade da ligação do estranho, do qual há a condição estrita da existência e da presença.
É preciso dar valor ao que, diante de nós, nos expõe a uma influência sombria da nossa própria transformação e da nossa própria decadência.
Não se trata nem de culpabilizar o Ocidente nem de reivindicar um Oriente mítico: trata-se de pensar um mundo nele mesmo e por ele mesmo fraturado, uma fratura que provém do mais isolado de sua história e que deve bem, de uma maneira ou de outra, piorar e talvez - quem sabe? – “piorar pouco”, constituir hoje sua razão obscura, não uma razão obscurecida, mas do qual o obscuro é o elemento. É difícil, é necessário. É nossa necessidade nos dois sentidos da palavra: é nossa pobreza e nossa obrigação.
O texto que se segue foi publicado na Itália, onde foi produzido nas condições que são indicadas em seu corpo (Ele aparecerá em prefácio para uma nova edição de A comunidade inconfessável de Maurice Blanchot, em uma tradução revista, nas edições SE de Milão, eu agradeço a Alessandri Fanfoni por seu convite (p.22).
As edições SE, de Milão me pediram para apresentar uma tradução revista de A comunidade inconfessável de Maurice Blanchot. O público italiano, disseram-me, não tem uma visão clara das circunstancias nas quais este livro foi escrito e publicado, sendo tudo expresso por seu autor fazendo eco a seu artigo publicado por mim com o título A Comunidade Ociosa. Este pedido me pareceu apresentar um interesse bem específico, pois me fez retornar a um episódio do qual eu negligenciara de mensurar exatamente os desafios.
A história de textos filosóficos sobre “a comunidade” nos anos 80 merecia ser escrita com precisão, pois ela é, mais em uns do que em outros, reveladora de um movimento profundo de um pensamento na Europa naquela época – um movimento pelo qual, nós somos ainda levados, embora em um contexto totalmente diferente, no qual o assunto da “comunidade” ao invés de se tornar mais claro, parece afundar-se em uma obscuridade singular (sobretudo no momento no qual escrevo estas linhas: em meados de Outubro de 2001). Em A comunidade ociosa eu evocara o início desta história, mas de maneira muito breve. Eu volto aqui, à ocasião deste prefácio, com o recuo do tempo que me permite melhor compreendê-la.
Ao mesmo tempo, o duro contexto que acabo de me lembrar – as disputas, as guerras comunitárias de todas as espécies e de todos os “mundos” (O Antigo e o Novo, o Desenvolvido e o Subdesenvolvido, o Norte e o Sul, o Leste e o Oeste) - torna talvez útil redefinir um movimento que só restaura o pensamento, isto porque ele pertence à sua existência.
Em 1983, Jean Christophe Bailly, propôs um tema para um futuro número da revista Aléa que seria publicado em Christian Bourgeois[3]. O tema proposto foi assim formulado: “A comunidade, o número”.
A elipse perfeitamente alcançada deste enunciado – no qual assegura o debate com elegância, de acordo com a grande arte de Bailly – apoderou-se de mim desde que eu recebi o pedido do artigo, e desde então não parei de admirá-la.
A “comunidade” era uma palavra então ignorada no discurso do pensamento. Ela deveria sem dúvida estar reservada ao uso institucional da “comunidade européia”, uso o qual nós sabemos hoje, quase vinte anos mais tarde, deixa em suspenso o conceito que ela emprega: isso também não é estranho a questão da “comunidade” tal como ela nos assombra, tal como ela nos abandona ou tal como ela nos alcança. Que se a soubera ou não, a palavra e seu conceito só poderiam passar pela armadilha da Volksgemeinschaft nazista, “comunidade do povo” no sentido que a conhecemos. (Na Alemanha, aliás, a palavra Gemeinschaft provocava ainda um forte reflexo de hostilidade de esquerda, e a tradução de meu livro, em 1988, fui chamado de nazista em um jornal de esquerda de Berlim. Em 1999, em revanche, outro jornal de Berlim, proveniente do ex-Estado, falava do mesmo livro de maneira positiva com o título “Retorno do comunismo”. O duplo sentido desta história me parece resumir bem a ambiguidade, o equívoco e talvez o paradoxo, mas também a insistência obstinada, não necessariamente obcecada, que leva com ela a palavra “comunidade”.) Por outro lado, o que restava ainda em 1983 da confiança socializável, de qualquer grau ou qualquer forma que fosse, guardava sua inclinação pela palavra “comunismo” (ao menos, isto se entende, com a condição de readquirir a exigência primeira contra o “real comunismo” que não se estava mais para descobrir).
Ora, o “comunismo” indica uma idéia e um projeto, enquanto a “comunidade” parece notar um fato, um dado. O “comunismo” se declara a favor de uma “comunidade” que não é dada, trata-se de um objetivo.
 Do discurso de Bailly, eu imediatamente analisei: “O que é o comunismo na comunidade?”; “Qual o projeto comunista, comunitário ou comunial?”; “O que é ele?”; até mesmo, “Qual é o seu ser, qual a sua ontologia, levando em consideração que isto indica uma palavra bem conhecida – comum – mas o conceito, talvez, se tornou muito incerto?”.
O conceito sozinho requeria um estudo, e o convite já manifestava uma reserva com relação à ordem do mesmo projeto no geral. (Bailly vinha de uma esquerda inclinada, senão ao extremo, ao não comunismo no sentido de partidos.) A única evidência da palavra a colocaria em um programa de análise e sem dúvida de problematização.
O “número” lhe era também inesperado, de outro modo. Ele lembrava de repente a evidência, não somente da multiplicação considerável da população mundial, mas com ela - como seu efeito ou como sua corroboração qualitativa – de uma multiplicidade se subtraindo às assunções unitárias, de uma multiplicidade que reduz suas diferenças, se dispersa em pequenos grupos, e até mesmo, em indivíduos, em multidões ou em povos. Deste lado, o “número” significava a continuação e a substituição do que fora “a massa” ou “a loucura” nas análises antes da guerra (Le Bom, Freud, etc.). Ora, nós sabíamos como foram as operações conduzidas sobre as “massas” pelos fascistas, tanto que os comunistas foram sobre as únicas “classes” destinadas a uma missão histórica.
A declaração seria então como um resumo vívido do problema que herdamos como do ou dos “totalitarismo(s)”- não diretamente representada em termos políticos (como se tratava de um problema de  “bom governo”), mas em termos que deveriam se compreender como ontológicos: o que é então a comunidade se o número torna-se o fenômeno único - ou a coisa em si - e se mais nenhum "comunismo" nem "socialismo", nacional ou internacional, não suporta mais a menor figura, nem a menor forma, o menor esquema identificável? E o que é então o número se a sua multiplicidade já não vale como massa à espera de um formato? (formação, conformação, informação), mas vale em suma para ele mesmo, em uma dispersão do qual não saberia a necessidade de nomeá-la disseminação (exuberância seminal) ou dispersão (pulverização estéril)?
Ora, acontece que, quando Bailly propôs este tema, eu estava no final de um ano letivo dedicado à Bataille examinado sob ponto de vista da política. Eu já havia pesquisado, muito precisamente, a possibilidade de um estudo inédito escapando do fascismo e do comunismo, outro tanto que ao individualismo democrata ou republicano (nem mesmo a noção "cidadão", que, desde então, procurou responder ao mesmo problema, mas dificilmente o fez avançar). Em verdade, eu procurava em Bataille, porque eu sabia que já circulavam a palavra e o tema da comunidade - o motivo desta pesquisa, que era também aquela do enunciado de Bailly (que, obviamente, conhecia Bataille sem portanto referir-se a ele). Este índice de pesquisa significava certamente, tanto para a um como para o outro, mas sem uma clara percepção do desafio, uma posição à principio indiretamente ou não exclusivamente política do problema: na frente ou por trás do “político[4]havia isto, que há do “comum”, dotodos” e do “numeroso”, e que nós sabíamos talvez mais do que tudo como pensar esta ordem do real.
O trabalho do curso me deixou insatisfeito. Bataille não tinha me dado a oportunidade de chegar à uma política inédita. Em vez disso, ele tinha mais de um olhar relegado quanto a possibilidade política como tal. Em seus escritos pós-guerra, e até o fim, ele distanciara o seu pensamento do clima político antes da guerra. Da mesma forma, ele se distanciara de toda rivalidade com uma “ciência” sociológica, bem como, de toda tentativa de fundação de um grupo ou “colgiado”. Não era mais uma questão de “sociologia sagrada” desse novamente aos facistas a energia pulsante e “ativista” no qual vira jogar sua mola principal. A agitação heterológico havia fracassado e que a guerra terminou com a vitória das democracias, em vez de se fazer esforços e atualizar as forças estáticas, deixava  no escuro os projetos políticos.
Da mesma forma, então, que Bataille fazia da “soberania” um conceito não-político, mas ontológico e estético - ética, pode-se dizer hoje - ele vinha a considerá-lo o forte vínculo (passional ou sagrado, íntimo) da comunidade reservada ao que ele chamou de acomunidade de amantes”. Este vinha então em contraste com o vínculo social e como a sua contra-verdade. O que seria suposto dedicar-se a estruturar a sociedade - ainda que fosse uma violação transgressora depositara fora dela mesma, em uma intimidade pela a qual a política permanecia sem apoio.
Ele me parecia reconhecer este aspecto da publicação que na época começava a obscurecer: a dissociação da política e do ser-em-comum[5].

sábado, 3 de setembro de 2011

Ciborgue


A ideia que parece se apresentar como central neste texto é o problema do reposionamento político de grupos (em especial o feminismo) num novo cenário, denominado por alguns de pós-modernidade. Neste contexto, Donna Haraway apresenta o termo ciborgue como ideia provocadora -- e que a meu ver tem intenção crítica --, capaz de leituras interessantes numa época marcada por avanços tecnológicos no campo da medicina e da robótica e do fim das leituras dualistas (dialética) na Filosofia e Ciências Humanas e Sociais.
Tendo em vista o momento histórico em que foi escrito, o texto de Haraway apresenta elementos comuns a autores pós-modernos a exemplo de Baudrillard e alguns de seus leitores. Esta influência pode ser notada em seu aspecto formal (estilo irônico de escrita e a nomeação de palavras novas, de impacto, a exemplo do “ciborgue”, para assinalar novos fenômenos) tanto quanto no conteúdo. Obras como “À sombra das maiorias silenciosas” e “Simulacro e simulações”, semelhantemente a Haraway, demarcam:
a) o fim da sociedade e a emergência de uma “massa” alienada;
b) o parricídio coletivo, a fragmentação e o pensamento descentrado;
c) o fim da representação e o advento de um “hiper-real”: em que se tornam indistinguíveis as fronteiras entre o real e o virtual, o corpo e o espírito, além de todas as oposições clássicas.
Estas posições são assinaladas por Haraway em algumas passagens. Elas remetem ao fim das dualidades (da dialética e do próprio marxismo) ou das “meta-narrativas” históricas (iluminismo, cristianismo) como diria Jean-François Lyotard.

“[...] o ciborgue não espera que seu pai vá salvá‑lo por meio da restauração do Paraíso, isto é, por meio da fabricação de um parceiro heterossexual, por meio de sua complementação em um todo, uma cidade e um cosmo acabados. O ciborgue não sonha com uma comunidade baseada no modelo da família orgânica, mesmo que, desta vez, sem o projeto edípico. O ciborgue não reconheceria o Jardim do Éden, não é feito de barro e não pode sonhar em retor­nar ao pó. (p. 44)

No entanto, Haraway segue persistente no viés político que se torna o eixo delineador de seu manifesto, pois embora reconheça o momento de desestabilização ontológica, reconhece: “O ciborgue é nossa ontologia; ele determina nossa política” (p. 41).
Ciborgue, para Haraway não consiste em um conceito, mas, como ela reitera insistentemente, uma metáfora, uma figura... Tal estratégia evita que a autora seja alvo das próprias críticas, já que a metáfora ou qualquer outra figura de linguagem tentam “acercar” (aproximar-se de) os fenômenos e não determina-los definitivamente, como o faz o conceito.
Em sua crítica política contra a identidade feminista, Haraway se posiciona contrária ao pensamento dualista presente na concepção de muitos movimentos: idealismo vs. materialismo; homem vs. máquina; corpo vs. espírito; homem vs. mulher etc. Para ela, o ciborgue, como figura crítica, é a “favor da confusão de fronteiras” (p. 42) Não faz sentido, portanto, hoje tentar encontrar uma unidade na ideia de “mulher” (conceito escorregadio) já que esta é bastante ampla e abstrata: por esta ideia perpassam as reivindicações de inúmeros grupos de mulheres (negras, chicanas etc) constituindo, no limite, a “matriz das dominações que as mulheres exercem uma sobre as outras”. Ao invés da identidade a autora opta pela “coalização” (p. 52-53) a constituição de uma luta política com base na afinidade.
Talvez esta seja a grande diferença de Haraway com grande parte do pensamento pós-modernos como Baudrillard, os quais acreditam que uma política (mesmo de grupo) já não seja mais possível e que o horizonte tecnológico foi completamente cooptado pelas forças do capitalismo.
Em minha leitura, a força expressiva deste manifesto advém da incorporação de tecnologias (não apenas informacionais) no corpo político, seguindo as leituras de Foucault sobre os modos de subjetivação para o cuidado de si.

Referências
HARAWAY, Donna; Kunzru, Hari; SILVA, Tomaz Tadeu (org.) Antropologia do Ciborgue - As vertigens do Pós-Humano. Belo Horizonte: autêntica, 2000.


O legado "teórico" dos estudos culturais


HALL, Stuart. Estudos Culturais e seu legado teórico. In. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed UFMG, 2003, p. 199-218.

Neste texto-reação pretendo discorrer sobre a pergunta: qual o grande legado dos estudos culturais?
Interpretando as palavras de Stuart Hall, entendo que este legado não é de natureza teórica (stricto senso), algo como uma estrutura híbrida, comum às teorias culturalistas, suscetível aos modismos teóricos, [1] mas uma postura crítica que fundamenta os estudos culturais desde os seus primórdios. [2] Entenda-se postura crítica aqui como vigilância epistemológica responsável pela produção de “relações instáveis” [3] frente a outras teorias (psicanálise, marxismo, feminismo, etc), o que mantém os estudos culturais sempre “em aberto”, inconcluso, em diálogo, evitando seu fechamento. Tal legado outorga que, independente do lugar ou do momento histórico em que os estudos culturais se desenvolvem (ou venham se desenvolver), estes não devem nunca perder de vista o seu caráter negativo, que coloca sob tensão as diversas teorias e tendências teóricas. É munido de tal perspectiva que podemos interpretar os “perigos” de que fala Hall ao se referir ao “formalismo” e à institucionalização dos estudos culturais em departamentos ou cátedras universitárias.
Sobre tal formalismo, Hall (Idem: 216) diz que “formalizar questões críticas do poder, história e política”, como acontece nos estudos culturais norte-americanos, pode “acabar com elas [as questões críticas]”. A formalização dos estudos culturais, neste caso, equivale à sua própria aniquilação (destruição de um suposto núcleo duro dos estudos culturais). Corroborando com isso, ainda no final do texto, o autor reitera seu rechaço pela idéia de um conhecimento completo ou “acabado” para os estudos culturais:

Volto à dificuldade de instituir uma prática cultural e crítica genuína. Que tenha como objetivo a produção de um tipo de trabalho político-intelectual orgânico, que não tente inscrever-se numa metanarrativa englobante de conhecimentos acabados, dentro de instituições (Idem, Idem: 217).

Entendo que tal postura crítica (ou negativa) esteja relacionada ao projeto político que subjaz os estudos culturais, mas também à influência foucaultiana no pensamento do Hall. Estes dois aspectos acabam por considerar como irrevogável e fundamental a multiplicidade das relações de poder presente na sociedade bem como as diferentes estratégias de apropriação da cultura pelos agentes sociais (instituições e sujeitos). Daí a impossibilidade de hipostasiar os estudos culturais a partir de um programa único (um corpo coerente e sistemático de idéias e ações: uma práxis una). Ao contrário disso, penso que os estudos culturais operem melhor (seja muito mais produtivo) se encarados como um jogo de tensões, um conflito dentro e fora dos institutos de pesquisas, uma guerra teórica que se dá nos campos lógico tanto quanto político, aberto à incorporação de problemáticas sociais as mais diversas, a objetos aparentemente estranhos (como a AIDS), de modo a garantir uma legitimidade indisciplinar. Se por um lado a epistemologia ausente dos estudos culturais (como descrevemos) pode criar uma espécie de problema institucional onde são desenvolvidos (o que comprometeria, por exemplo, o financiamento destas pesquisas e suas formas de avaliação), por outro lado, tal indisciplina é a única garantia de se realizar pesquisas descompromissadas com os interesses de grupos ligados ao Governo ou ao Mercado.
Esta tentativa de se esquivar de um poder disciplinar sobre os estudos culturais está bastante presente em Hall. Aliás, é por este motivo que ele evita “contar uma história” dos estudos culturais; em vez disso, recorre ao método genealógico de Foucault que busca não uma origem ou uma gênese estável, um começo tranqüilo que se estende por toda uma linha histórica contínua e ininterrupta, mas o momento em que um discurso emerge, sobrepondo-se aos outros, obviamente, não sem um conflito ou uma disputa na ordem do discurso (esta é a concepção genealógica de Foucault). [4]

Os estudos culturais abarcam discursos múltiplos, bem como numerosas histórias distintas. Compreendem um conjunto de formações, com suas diferentes conjunturas e momentos no passado. Gostaria de insistir na variedade de trabalhos inerentes aos estudos culturais. Constituindo sempre num conjunto de formações instáveis, encontravam-se “centrados”, apenas entre aspas [...] (Idem, Idem: 201)

Contra esta tendência estabilizante dos estudos culturais, entendo que seja preciso, como sugere o autor, retomar o legado gramsciano, especialmente o conceito de “intelectual orgânico” a quem Hall atribui duas tarefas distintas, porém complementares:
1) ter um conhecimento “superior” àquele do intelectual tradicional – como ele observa, “se jogarem o jogo da hegemonia terão que ser mais espertos do que ‘eles’” (Idem, Idem: 207);
2) transmitir este conhecimento aos intelectuais “não-profissionais” – trata-se de ampliar o campo de batalha, descentralizar os centros de pesquisas, fazer disseminar, repercutir um conhecimento para toda a sociedade. A prática discursiva (falar, transmitir saberes, fazer proliferar uma idéia) constitui aqui uma arma imprescindível.
A este intelectual orgânico, trabalhador do bloco histórico e da hegemonia, acrescentaria ainda, o intelectual público. Sua tarefa é a mesma do intelectual orgânico, mas dele se diferencia já abre a possibilidade de um diálogo múltiplo e, melhor, sem as amarras institucionais.

P.S. - Para evitar a institucionalização, procurei grafar os estudos culturais neste texto em caixa-baixa.


[1] Modismo teórico aqui entendido como vício acadêmico que, grosso modo, reduz um período histórico a uma teoria, por exemplo, o marxismo aos anos 40/50, o feminismo e o estruturalismo aos anos 60, o pós-modernismo, segundo François Lyotard, a partir de meados dos anos 80... Embora julgue importante o momento histórico na confecção de uma teoria, a meu ver, esta tendência pode não só por reduzir a complexidade de um pensador (e de suas obras) a uma “escola” de pensamento que, muitas vezes, o descaracteriza (Walter Benjamin pode ser alojado na Escola de Frankfurt? Michel Foucault é um historiador ou um estruturalista?); sobretudo, tal reducionismo ignora uma questão de fundo importante que é o compromisso (ou a fidelidade) do intelectual contra as estruturas de dominação. Penso eu que tal compromisso seja atemporal, não um modismo ou algo passageiro, mas aquilo que subjaz toda e qualquer produção teórica. Daí os estudos culturais caracterizarem-se mais como projeto político do que tendência teórica.
[2] Evitarei aqui falar em gênese, como veremos mais adiante.
[3] A expressão é de Jacqueline Rose (Apud Hall, 2003: 209).
[4] A constituição de uma epistème pode ser verificada não só pelos saberes que a conforma, mas principalmente pelo que ela exclui (é importante lembrar o interesse de Foucault pelos elementos marginais, por aquilo que é excluído dos ordenamentos). Daí a sugestão de Hall: “A única teoria que vale a pena reter é aquela que você tem de contestar, não a que você fala com profunda fluência” (Idem: 204).