sábado, 3 de setembro de 2011

Apontamentos do texto de Karl Marx, “Introducción”, Elementos fondamentales para la critica de la economia política (borrador) 1857-1858 [Grundrisse], Buenos Aires, Siglo Veinteuno Editores, 1974


Introdução

Neste texto apresentaremos os pontos que julgamos mais importantes da referida obra, as quais contemplam, em nosso entendimento, três momentos complementares: 1) crítica às idéias e autores da economia política clássica inglesa (David Ricardo e Adam Smith); 2) proposição de uma outra concepção de economia política, que podemos entender como economia política moderna (marxiana) e; 3) explicitação do método desta economia política moderna para análise da produção socialmente determinada. Ao longo do texto explicitaremos alguns de seus conceitos fundamentais e comentaremos passagens igualmente importantes. Aqui aparecerão nomes de outros autores, posteriores a Marx, os quais mantêm com ele uma “dívida”.

1) Crítica aos autores da escola clássica da economia política

Marx inicia o texto apresentando algumas idéias do século XVIII, especificamente a relação entre produção e indivíduos autônomos, presente nos trabalhos de David Ricardo e Adam Smith (“o caçado e o pescador isolados...”). Sobre esta relação, e especulando sobre a possibilidade de existência de um “indivíduo isolado”, Marx critica tal visão enfatizando o reducionismo (atomismo cartesiano) próprio dos economistas liberais. Ao invés disso, ele afirma que o indivíduo é produto da história, “um resultado histórico”, não um “ponto de partida da história”. Pois, quanto mais recuamos na história, diz Marx, mais vemos o indivíduo como dependente e formando um todo maior: primeiramente com a família, depois com a comunidade e a tribo e, somente muito tempo depois, com o Estado e a Sociedade Civil. Para Marx, a própria noção de Sociedade Civil foi pensada num momento em que as relações sociais atingem um grau elevado e o indivíduo busca sua realização em “fins privados”. [1] Parafraseando Aristóteles segundo o qual o homem é um animal social, Marx completa: este, entretanto, só pode se individualizar em sociedade.
Antes de avançar, gostaria de comentar um ponto fundamental, presente no começo desta obra, que se refere à noção de indivíduo como produção histórica. Notadamente, esta idéia alcança grande notoriedade no século XX com Michel Foucault, reconhecidamente um crítico do marxismo. No entanto, podemos ver em Foucault a reprodução de algumas idéias de Marx, onde a idéia do indivíduo como incidência do poder na história é apenas um exemplo. Em seu diagnóstico sobre a “crise médica”, ou mesmo sobre o surgimento do sistema carcerário no século XVIII, percebemos o uso de balizas marxistas: no primeiro caso, Foucault critica a estruturação de uma “economia política médica” a partir de dispositivos técnicos e administrativos (governamentalidade); no segundo caso, ele afirma que a função da prisão é o deslocamento de mão de obra inoperante, a domesticação dos corpos para um determinado sistema produtivo.[2] Tanto na concepção de indivíduo como produto do poder sobre a história, quanto nestas outras leituras econômicas da sociedade, observamos uma dívida de Foucault para com Marx, dívida esta que podemos vê-la saldada num texto denominado “o que é um autor”. Outro ponto que mereceria destaque e maior aprofundamento é o anti-atomismo de Marx, que consiste em aplicar análises sociais (a partir do coletivo) para analisar fenômenos aparentemente (supostamente) individuais. Este pressuposto pode ter inspirado, em certa medida, Foucault quando ele propõe analisar o doente, o louco, o homossexual (o indivíduo) não sob o ponto de vista individual (como o faz a medicina, a psiquiatria), mas por mecanismos coletivos, determinações sociais (a exemplo do poder, do sistema econômico-administrativo, os períodos históricos, etc.)
Continuando... No tópico “Eternização de relações de produção históricas. Produção e distribuição em geral”, Marx propõe que, em todas as épocas, a produção possui certos “traços” ou “certas determinações comuns”. A produção em geral, segundo ele, é uma abstração, mas uma abstração que possui um sentido na medida em que realça os elementos comuns. Podemos ler esta proposição como um constructo metodológico (que será retomado mais adiante em nosso tópico 3). Aqui a preocupação (científica) de Marx transparece como busca de um padrão de produção, uma lei, uma estrutura, um código, uma lógica de funcionamento que atravessa a história, mas que pode ser recuperada por comparação: “Certas determinações serão comuns às épocas mais modernas e às mais antigas. Sem elas não se poderia conceber nenhuma espécie de produção [...] As determinações que valem para a produção em geral são precisamente as que devem ser separadas”.
Ainda sobre o problema da produção, Marx irá criticar as “leis naturais”, que eternizam distribuições e formas de produção desiguais. Esta posição, bate de frente com os “Principles of Political Economy with some of their Application to Social Philosophy” (1848) de John Stuart Mill. Para Marx estas leis nada mais fazem do que “abstrair” a sociedade e legitimar as relações burguesas, considerando-as não como produtos da história (a partir das chamadas lutas de classe), mas um dado natural (eterno) e imutável: “É possível confundir ou liquidar todas as diferenças históricas formulando leis humanas universais”.
Para Marx esta “eternização” localiza-se em pelo menos dois pontos principais: 1) a propriedade e; 2) a proteção dela por meio da justiça e da polícia. Sobre o primeiro ponto, Marx alerta: “toda produção é apropriação por parte do indivíduo no seio, e por meio de, uma forma de sociedade determinada”. Está implícita aqui a idéia fundamental da mais-valia, a expropriação do trabalho objetivado (forma de capital) do trabalhador, essencial nos escritos de Marx. Em relação ao segundo ponto, a proteção da propriedade por dispositivos repressivos, ele diz: “toda forma de produção engendra suas instituições jurídicas, sua própria forma de governo [...] Aos economistas burgueses parece-lhes que com a polícia moderna a produção funciona melhor do que, por exemplo, com a aplicação da lei do mais forte. Esquecem-se apenas de que a lei do mais forte se perpetua sob a forma de seu ‘estado de direito’”. [3]

2) Economia Política Moderna

A idéia chave aqui é a compreensão do circuito produção-distribuição-troca-consumo, não como etapas autônomas ou independentes, mas como articulações de uma mesma totalidade. Marx dá início ao processo de reconstrução do concreto dentro do sistema de produção socialmente determinado (ao que ele chamará de “retorno” da abstração, como veremos mais adiante no tópico 3).
Marx começa apresentando os elementos fundamentais da produção social tomando-os, primeiramente, como etapas isoladas (como o fazem os economistas de sua época). Temos então:
a) produção, produto da natureza produzido pelos indivíduos em sociedade e adequado às suas necessidades;
b) distribuição, a proporção (a quota) de “participação” do indivíduo neste produto;
c) troca, mecanismo de equivalência dos produtos dados pela distribuição;
d) consumo, objeto de desfrute, de apropriação individual. Marx diz que a diferença entre a distribuição e a troca, enquanto etapas intermediárias do circuito, consiste em analisar a primeira como sendo regulada por regras sociais, enquanto a segunda regulada pela vontade do indivíduo.
Após estabelecer os elementos do circuito, Marx inicia sua leitura sugerindo que a separação, por exemplo, entre produção e consumo, como esferas autônomas e independentes, constitui atividade de descolamento do real, puro jogo de conceitos.
<Consumo e produção>
Para Marx, “[...] a produção é imediatamente consumo, o consumo é imediatamente produção. Cada um é imediatamente seu oposto”. Ou, em outras palavras: produção é consumo e consumo é produção. O indivíduo para produzir, deve consumir (ingestão de alimentos, absorção de técnicas e conhecimentos, etc.). Da mesma forma, não se conhece nenhum consumo que não resulte numa produção: “[...] na natureza, o consumo dos elementos e das substâncias químicas é a produção de plantas”.
Desenvolvendo ainda esta idéia, Marx afirma que “o consumo produz a produção” de duas maneiras:
1) na medida em que só no consumo o produto se torna produto: o vestido só tem existência, quer dizer só é produto, quando eu experimento (visto), uma casa desabitada não existe, quer dizer, ainda não é uma casa – ela o é somente quando passo a habitá-la;
2) na medida em que o consumo cria a necessidade de uma nova produção e, por conseguinte, a condição subjetiva e o móbil interno da produção, a qual é o seu pressuposto. O telefone celular é exemplar para explicar este consumo que cria mais necessidade. Nunca se precisou dele, mas depois de um tempo de uso não se pode imaginar vivendo sem ele. A atualidade de Marx reverbera: “Sem necessidade não há produção, mas o consumo produz necessidades”.
Mas se “o consumo produz a produção”, a produção não apenas produz um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto. Esta produção, segundo Marx, acontece pelo consumo de três coisas:
1) da coisa em si (ou seja, o produto destinado ao consumo);
2) o modo como se consome (determinado pelo produto);
3) a necessidade de um novo (posterior) consumo (provocado pelo consumo inicial). Além disso, o consumo produz uma certa disposição do produtor em continuar produzindo, uma espécie de estímulo à produção, um sentido para o produtor.
<Distribuição e produção>
Como vimos, embora Marx comece didaticamente sua explanação do circuito a partir de elementos isolados, ele deixa evidente que se deve analisá-los como relação num todo. Da mesma maneira que a produção é imediatamente consumo (e vice-versa), Marx propõe a idéia de que a distribuição determina a produção, mas dependendo do enfoque (histórico ou natural), a produção determinará a produção. Ele retoma Ricardo, cujo ponto fundamental de sua obra, “On principles of political economy and taxation” (1817), diz respeito à distribuição, quer dizer, à repartição do produto socialmente produzido a qual se faria entre as três principais classes: proprietários de terra (na forma de renda da terra), trabalhadores assalariados (na forma de salários) e os arrendatários capitalistas (na forma de lucros do capital). [4] Este enfoque, entretanto, possui um compromisso com as leis naturais.
Desse modo, Marx propõe analisar tudo sob o ponto de vista da produção e sugere: “Em última análise, as questões formuladas reduzem-se a uma só: qual é o efeito das condições históricas sobre a produção, e qual a relação entre esta e o movimento histórico em geral?”
<Troca e produção>
O resultado a que chegamos, diz Marx, não é de que a produção, a distribuição, a troca e o consumo são idênticos, mas que constituem articulações de uma totalidade, diferenciações dentro de uma unidade: cada um deles é um elemento de um todo, representa diversidade no seio da unidade. [5] Esta noção será importante para compreendermos a idéia de concreto como síntese das múltiplas determinações (e não dos múltiplos objetos).

3) Método da Economia Política

O primeiro constructo a ser levado em consideração aqui é o conceito de concreto. Segundo Marx, “O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações e, por isso, é a unidade do diverso”. Esta afirmação deve ser compreendida a partir da exigência (obrigatoriedade) de um duplo movimento que vai: 1) do real representado às abstrações; 2) das abstrações ao real (concreto). Marx exemplifica isso começando por uma categoria simples como população: “Por uma análise cada vez mais precisa chegaríamos a representações cada vez mais simples; do concreto inicialmente representado passaríamos a abstrações progressivamente mais sutis até alcançarmos as determinações mais simples. Aqui chegados, teríamos que empreender a viagem de regresso até encontrarmos de novo a população - desta vez não teríamos uma idéia caótica de todo, mas uma rica totalidade com múltiplas determinações e relações.”
Transparece aqui uma crítica aos hegelianos que desconsideram este segundo movimento, conforme Marx “Eis por que Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que, partindo de si mesmo se concentra em si mesmo, se aprofunda em si mesmo e se movimenta por si mesmo; ao passo que o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto é, para o pensamento, apenas a maneira de se apropriar do concreto, de o reproduzir na forma de concreto pensado”. [6]
A busca por relações constitui a exigência do concreto propriamente dito. Este, na verdade, é o elemento diferencial do método marxista (como vimos nos tópicos 1 e 2, seja na relação do indivíduo com a sociedade, seja da relação entre os elementos circuito de produção socialmente determinado), reintegrando (restituindo) a parte abstraída à totalidade do real. [7] O resultado, conforme explicita Marx, são relações cada vez mais complexas e intrincadas, partindo de simples categorias (a população, por exemplo) e atingindo sistemas econômicos, Estados, mercados universais: “Os economistas do século XVII, por exemplo, partem sempre do todo vivo: a população, a nação, o Estado, vários Estados, etc. No entanto, acabam sempre por descobrir, mediante a análise, um certo número de relações gerais abstratas determinantes, tais como a divisão do trabalho, o dinheiro, o valor, etc. Uma vez fixados e mais ou menos elaborados estes fatores começam a surgir os sistemas econômicos que, partindo de noções simples - trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca - se elevam até ao Estado, à troca entre nações, ao mercado universal. Eis, manifestamente, o método científico correto”.
Assim, para Marx, a população se constituiria uma abstração se deixássemos de lado as relações que a constituem, ou seja, as classes que a compõe. Estas classes, por sua vez, seriam uma palavra vazia se ignorássemos os elementos em que se baseiam (o trabalho assalariado, o capital, etc.) Estes últimos supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços, etc. E assim por diante... O capital, por exemplo, não é nada sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem os preços, etc.
Analisando mais a fundo as idéias contidas neste texto, observamos a relação entre “categoria simples” e “categorias concretas”. O entendimento desta diferença é crucial para compreender, posteriormente, o avanço das idéias de Marx: “[...] as categorias simples são expressão de relações nas quais o concreto menos desenvolvido pode já ter-se realizado sem estabelecer ainda a relação ou o vínculo mais multilateral expresso teoricamente na categoria mais correta; esta categoria simples pode substituir como relação secundária quando a entidade concreta se encontra mais desenvolvida”. Por “categorias simples” entendemos elementos como o dinheiro, que ainda está desprovido das relações (sociais, econômicas) implicadas. Por “categorias concretas” temos elementos como o capital, o valor, etc. quer dizer, os elementos já implicados, relacionados com outros em algum nível de análise. Segundo Marx: “O dinheiro pode existir, e de fato existiu historicamente, antes do capital, dos bancos, do trabalho assalariado, etc. Deste ponto de vista pode afirmar-se que a categoria mais simples pode exprimir relações dominantes de um todo não desenvolvido, ou relações secundárias de um todo mais desenvolvido, relações essas que já existiam historicamente antes de o todo se ter desenvolvido no sentido expresso por uma categoria – mais concreta. Só então o percurso do pensamento abstrato, que se eleva do simples ao complexo, poderia corresponder ao processo histórico real”.
Outra idéia que reaparece aqui é a busca de leis ou de invariantes capazes de determinar os processos sociais em momentos históricos específicos. Vemo-lo em três momentos (complementares) do texto, os quais reproduzimos literalmente:
1) “Assim as abstrações mais gerais apenas podem surgir quando surge o desenvolvimento mais rico do concreto, quando um elemento aparece como o que é comum a muitos, como comum a todos”.
2) “[...] as categorias mais abstratas, embora sejam válidas para todas as épocas (devido à sua natureza abstrata, precisamente), são também - no que a sua abstração tem de determinado - o produto de condições históricas e só são plenamente válidas para estas condições e dentro dos seus limites”.
3) “Em todas as formações sociais, existe uma produção determinada que estabelece os limites e a importância de todas as outras e cujas relações determinam, portanto, os limites e importância das outras todas”.
Por fim, Marx termina esta primeira parte do texto aplicando as idéias anteriores no domínio da arte. A idéia central, acreditamos, é o conceito de arte como “forma de transformar” a natureza, uma forma de trabalho, porém modelada pelas forças sociais e históricas: “A arte grega tem como suposto a mitologia grega, ou seja, a natureza e as formas sociais já modeladas através da fantasia popular de uma maneira inconscientemente artística. Estes são seus materiais. [...] A mitologia egípcia não poderia jamais ser o seio materno da arte grega”. A ressonância deste trecho em Walter Benjamim, sobretudo na “obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, parece evidente.


[1] No tópico 3 veremos que Marx concebe o surgimento de conceitos a partir de seu contexto histórico.
[2] Os textos de Michel Foucault citados são “El sujeto y el poder.” (In. Revista Mexicana de Sociología 50, n.3, 1988, p. 03-20); “La crisis de la medicina o la crisis de la antimedicina” (In. Educación médica y salud 10, n. 2, 1976, p. 152-170); “Vigiar e Punir” (Petrópolis, Editora Vozes,1996).
[3] Esta idéia de proteção dos direitos sobre a propriedade privada conforme os interesses burgueses será objeto de reflexão no século XX com Louis Althusser, a partir do qual o autor fala dos “aparelhos repressores do Estado”.
[4] Para Ricardo o papel da ciência econômica é determinar as leis naturais que regem esta distribuição.
[5] A dialética unidade e totalidade, presente nesta concepção marxista pode ter inspirado outro pensador do século XX, Edgar Morin. É nítida a semelhança desta concepção metodológica com a noção de “pensamento complexo”. Morin, numa autobiografia (intitulada Meus Demônios) já havia afirmado sua inspiração em Marx, bem como uma dívida e profunda admiração.
[6] Em outros momentos, entretanto, vemos expresso em Marx o princípio da dialética hegeliana, segundo o qual o ser e o pensamento são idênticos (e que contradições do pensamento refletem contradições da realidade). Observamos que Marx utiliza esta idéia para pensar nas categorias (simples e concretas) que conformam e representam o real.
[7] Chamamos atenção aqui para a presença de um elemento importante, de grande valor epistemológico para a época (século XIX), sendo igualmente importante para nós, nos dias atuais: o método cartesiano é analítico, desconstrói e decompõe o objeto até o último detalhe (a exemplo da dialética hegeliana), mas Marx enseja a necessidade de reconstruir este objeto novamente, trazendo-o de volta à realidade (ao concreto), às relações, às múltiplas determinações do real.

Nenhum comentário:

Postar um comentário