Introdução
O texto que segue apresenta dois percursos: 1) definição das coordenadas epistemológicas que fundamentam a existência de um setor do conhecimento denominado Economia Política da Comunicação (EPC); 2) explicitação de uma possível entrada teórica neste setor (inicialmente pela via da commodification) a partir de um rol de problemáticas sugeridas pelo autor e conforme sua proposta analítica. Em ambos os percursos, apresentamos as idéias e os conceitos que consideramos mais importantes nesta leitura.
Condições de produção da teoria
O texto inicia apresentando a diferença entre três formas distintas de lidar com um ponto de vista teórico: repensar, revisar e repudiar. Enquanto revisar e repudiar significam, respectivamente, “atualizar” uma teoria [1] e rejeitar uma perspectiva teórica a partir de uma outra proposição, [2] renovar irá designar o meio termo entre a revisão e o repúdio. Conforme Mosco: “Repensar está em algum lugar entre pequenos ajustes oportunos do revisionista e a transformação que resulta de um repúdio de facto. Começa pelo reconhecimento crítico de princípios centrais e diversas interpretações da proposta” (p. 136).
Por crítica, Mosco irá entender três coisas: 1) O entendimento aprofundado de uma perspectiva teórica e de suas várias vertentes, a partir do qual se pode estabelecer uma comparação das perspectivas entre si (tal atividade possibilita verificar diferenças e similaridades entre elas); 2) Auto-reflexão teórica, ou seja, olhar para dentro de seu próprio campo teórico, fazer dele também seu objeto (e não somente pensar no processo de concentração das propriedades mediatica, por exemplo); em outras palavras, pensar e agir epistemologicamente fazendo jus à práxis como premissa delineadora do fundamento da EPC; 3) Suscitar o debate acerca da importância das correntes da EPC e suas inúmeras manifestações. Isso significa também medir as distâncias entre outros setores teóricos que fazem fronteiras (externa) com a EPC, a exemplo dos cultural studies e dos policies studies (respectivamente, estudos culturais e estudos políticos da media).
Definido a idéia de crítica como elemento fundamental da EPC, Mosco revela outros pressupostos teórico-conceituais (agora mais voltados à construção epistemológica) que embasam sua proposta. Chama atenção os conceitos de “sobredeterminação” e “constituição mútua”, ambos submetidos à compreensão da realidade como construção múltipla a partir da observação sensorial do pesquisador. Para Mosco, a sobredeterminação – que diz que um fato social possui não uma única causa (por exemplo, econômica), mas múltiplas determinações e relações (por exemplo, a cultura) – deu um passo importante rumo ao refinamento teórico da EPC, uma vez que esta incorria na simplificação e unidirecionalismo. “O resultado é um campo social dinâmico irredutível a qualquer essência particular e constituída de múltiplas articulações e fraturas” (p. 137). Conforme Mosco, apesar da sobredeterminação estar presa à idéia do determinismo, tal conceito possibilita à EPC sair do esquema linear de relação contribuindo significativamente para a teoria do conhecimento (da complexidade) no que diz respeito à diversidade de análises do campo social. Outra perspectiva é a constituição mútua, semelhante à sobredeterminação, já que compreende os fatos da realidade (inclusive a própria pesquisa) como produto de múltiplas determinações, porém sem o peso do determinismo. É justamente por esta razão que o autor irá preferir o termo constituição mútua a sobredeterminação, já que o primeiro contempla a relação complexa e múltipla entre efeito e causa, um processo de circularidade ausente neste último.
Desta compreensão do múltiplo, Mosco avança e refina ainda mais os pontos fundamentais de sua epistemologia, ressaltando a ontologia presente na proposta de sua EPC: ao invés de se centrar nas análises estruturais e institucionais, algo bastante comum neste setor, Mosco irá pensar nas análises processuais (tendo em vista justamente os mecanismos transformativos). A justificativa apresentada por ele é de que as coisas, as estruturas e instituições, a realidade em geral, está em constante mudança; não convém, neste caso, estudar os estados, mas o processo em si, a própria mudança.
Em linhas gerais, Mosco apresenta as condições ontológica e epistemológica para o desenvolvimento de uma Economia Política da Comunicação definindo, deste modo, suas bases teóricas e conceituais, bem como o objeto e suas diferentes formas de apreensão. [3] Ainda, o autor estabelece o que podemos considerar como as linhas de pesquisas da EPC que, em seu entendimento, possibilitam uma visão ampla dos problemas prementes da EPC na atualidade. Estas são definidas a partir de três entradas: commodification, spatialization e structuration – as quais traduzimos aqui como mercantilização, espacialização e estruturação. Comecemos, pois, com a mercantilização.
Mercantilização
Mosco retoma aqui a definição de Marx sobre a mercantilização, segundo o qual, trata-se de um processo que “descreve o modo como o capitalismo cumpre seu objetivo de acumular capital ou realizar o valor através da transformação do valor de uso em valor de troca” (p. 140). Desta leitura marxista, a sociedade capitalista será apresentada como uma “coleção de mercadorias”, sendo a relação social entre pessoas mediada por tais mercadorias (fetichismo). Segundo Mosco, o fundamento analítico da Economia Política marxista (considerada também a principal chave da EPC atual) consiste em interrogar não apenas o mecanismo de produção, circulação e consumo de mercadorias, mas igualmente as relações implícitas no conjunto das trocas mercantis (fetichismo), cuja aparência neutra [4] oculta um processo histórico: “Uma das chaves para a análise marxista, e um legado que influenciou toda a economia política subseqüente, é interrogar-se sobre a mercadoria para determinar o que sua aparência significa, descobrir as relações congeladas na forma mercadoria” (p. 141).
Para uma análise acurada disso que se oculta na mercadoria, Mosco parte de alguns conceitos presentes em “O Capital”, a exemplo do processo de produção, a noção de fetichismo da mercadoria (livro 1) e o circuito ou circulação do capital financeiro, produtivo e capital-mercadoria (livro 2). Em relação ao processo de produção da mercadoria, dois pontos são imprescindíveis para sua aplicabilidade na comunicação: a exploração do trabalho (FT) e o mecanismo que oculta esta exploração.
A exploração do trabalho que, segundo Mosco, varia conforme o estado de luta de classe de uma determinada formação social (p. 142 – 143) está também contida na mercadoria de maneira implícita. [5] Este ocultamento se dá em virtude daquilo que Marx denominou fetichismo da mercadoria: “A mercadoria contém uma dupla mistificação. Primeiro, naturaliza a relação social entre capital e trabalho. É o computador que aparece e não uma luta no ponto da produção. Segundo, a mercadoria é reificada, isto é, ela assume uma vida própria que se destaca do social e passa a governá-lo” (p. 143). A exploração de trabalho implicado na produção capitalista, bem como o mecanismo que o tenta dissolver na mercadoria, devem ser considerados nas análises comunicacionais, sobretudo voltadas aos agentes (empresas midiáticas) produtores que realizam a mercantilização da comunicação, ou seja, transformam “produtos, cujo valor é determinado por sua habilidade de encontrar necessidades individuais e sociais, em produtos cujo valor é o que eles podem encontrar no Mercado” (143 – 144).
Após apresentar os conceitos que constituem a base da economia política marxista, o autor aplica tais conceitos na Comunicação. Neste âmbito, e retomando a interrogação inicial acerca daquilo que se oculta na mercadoria, podemos definir duas problemáticas fundamentais ou, como diz Mosco, “duas dimensões gerais significativas na relação da mercantilização da comunicação”. São elas: 1) “os processos de comunicação e tecnologias que contribuem para o processo geral de mercantilização na economia como um todo” (p. 142). Aqui, o autor fala da importância assumida pelos meios técnicos de comunicação para o controle e administração (logística) do tempo de produção, circulação e consumo de mercadorias (eliminação dos chamados tempos mortos), aumentando a eficiência de serviços como transporte e estocagem e diminuindo o desperdício de mercadorias; 2) em sociedades inteiramente penetradas por instituições e processos de comunicação, a comunicação como prática social influencia decisivamente a mercantilização no trabalho, expressando-se na forma de melhorias ou contradições do processo de mercantilização societal (p. 142). A importância da comunicação enquanto instituição e agente econômico foi sentida em todo o mundo culminando na tendência global à liberalização ou privatização de setores da telecomunicação e media a partir da segunda metade do século XX.
A forma mercadoria na comunicação
Aqui Mosco faz um balanço dos estudos da EPC, reiterando a ênfase sobre as descrições e exames de formas estruturais responsáveis pela produção, distribuição e troca de mercadorias comunicacionais (a cargo de companhias globais), além do papel do Estado nesta regulação. Embora haja o problema da mercadoria comunicacional nestes estudos (entretanto, voltadas à questão do conteúdo e/ou audiência), Mosco sente falta de uma análise específica e aprofundada sobre trabalho nas indústrias da comunicação.
De todo modo, o autor destaca a importância dos estudos sobre a forma mercadoria nas medias de massa e, particularmente, o processo de mercantilização de audiência e do trabalho.
Mercantilização do conteúdo – Para Mosco, geralmente a entrada teórica para os estudos da forma mercadoria na media se faz a partir de um estudo de conteúdo, ou seja, a análise da produção de bens comunicacionais (jornal, revista, programas de TV, etc.) de onde se evidencia o percurso da produção e realização desta mercadoria específica e, posteriormente, de sua conversão em dinheiro (lucro gasto em despesas pessoal ou reinvestido neste setor ou em outro): D – M (FT + MP) ...P(criatividade)... M’ – D’ (d + d’). A equação marxista aqui ainda é válida. A novidade, entretanto, é o duplo papel exercido pelas mercadorias comunicacionais, os quais contribuem significativamente para a mercantilização da economia como um todo. Segundo Mosco “[...] a tendência geral da pesquisa em comunicação tem sido a de se concentrar no conteúdo como mercadoria e, por extensão, identificar as conexões entre o status da mercadoria, seu conteúdo e significado. Como resultado, a comunicação é tida como uma mercadoria especial e particularmente eficaz porque, além de sua capacidade de produzir mais-valia (assim se comportando como todas as outras mercadorias), ela contém símbolos e imagens, cujo significado ajuda a formar a consciência” (p. 146 – 147). Para Mosco, inúmeros estudos enfatizaram este duplo papel da forma mercadoria na comunicação, acentuando o fato de que estes signos estão a serviço dos interesses dominantes. Um expoente importante desta vertente é Nicholas Garnham; sendo particularmente valioso sua reflexão sobre o papel “indireto” destas mercadorias, compreendidas em sua dimensão ideológica.
Mercadoria-audiência – A grande contribuição de Garnham para a EPC, segundo Mosco, foi ter concebido esta dupla dimensão (ou papel) da mercadoria da media; Smythe, entretanto, apresenta esta idéia de uma outra forma, afirmando ser a audiência (e não o produto em si ou os valores nele incutidos) a mercadoria primária dos meios de comunicação de massa: “o trabalho público [audiência] ou a sua força de trabalho é o principal produto da mídia de massa” (p. 148). A idéia de Smythe repercutiu positivamente entre os intelectuais da ECP. A partir daí Smythe consegue não apenas montar um aparato teórico-metodológico respeitável, a partir do estabelecimento de uma tríade que liga media, audiência e publicidade, como também resgatar o materialismo perdido nas análises sobre a ideologia: “O processo de mercantilização integra completamente as indústrias de media na economia capitalista não pela criação de produtos ideologicamente saturados, mas pelo público que produz, em massa e em formas específicas demograficamente desejáveis, para os anunciantes” (p. 149).
A mercadoria cibernética (mercantilização intrínseca) – Eileen Mehan, por outro lado, oferece uma alternativa para pensar a audiência como mercadoria, porém, centrando suas análises sobre as informações (índices) desta audiência, como tamanho, composição, padrões e hábitos de uso de serviços infocomerciais, etc. O conhecimento destas informações permite criar um banco de dados com o perfil consumista de um cada indivíduo e, a partir daí, produtos direcionados. Para isso, Mehan chama atenção às técnicas de mensuração, monitoramento e controle da produção, distribuição, troca e consumo, a exemplo de certos serviços como aqueles que geram dados cadastrais de clientes de lojas virtuais, usuários de cartões de crédito, etc. “Essas práticas são partes do processo de mercantilização porque a informação produzida é usada na produção de mercadorias, como jornais ou programas de televisão, e é cibernético porque o resultado do processo de produção de informação é a produção de uma nova mercadoria. A esse respeito, os índices de audiências são mercadorias cibernéticas porque são constituídas como mercadorias num processo que contribui para a produção de mercadorias” (p. 151). Alguns estudos, segundo Mosco, apontam esta tendência na prática do monitoramento. Omo aponta DeSimone, hoje a maioria das organizações comerciais está em negócios informacionais deste tipo. Exemplos desta prática não faltam: Time Warner (magazine division), Lotus MarketPlace, Citicorp... “Você compra uma revista e paga com um cartão de crédito. Uma simples transação? Dificilmente. A informação sobre quem você é e quais revistas você prefere – gravadas pelo computador – vale tanto quanto a venda da revista. Esta informação pode ser embalada de várias maneiras. Ela pode ser comercializada para outros” (p. 151 – 152).
A mercadoria cibernética (mercantilização extensiva) – Outros trabalhos tem descrito a expansão do processo de mercantilização para áreas além da comunicação, como atestam os estudos urbanos, geográficos, educacionais e culturais. A mercantilização extensiva, diz Mosco, se refere a esta extensão do processo mercantil que avança por todos os espaços sociais, impondo o Mercado como elemento comum (público) entre as pessoas e considerando as leis do mercado o único mecanismo de direito (cidadania): “Mercantilização extensiva também inclui a transformação de espaços comuns, dos parques públicos aos centros de compras privados, além da crescente dependência de patrocínio comercial a museus, eventos esportivos e festivais” (p. 153). Entretanto, há também uma contraparte neste processo, qual seja, a resistência que o capital encontra em certas formações sociais: “Estes desenvolvimentos sugerem que o processo de mercantilização estendeu para lugares e práticas que, por sua vez, tendem a ser organizadas de acordo com diferentes lógicas sociais, uns baseados na universalidade, igualdade, participação social e cidadania que, apesar de suas deficiências, ampliaram os fundamentos da ação social cada vez mais reduzida a uma lógica de mercado que equipara direitos ao poder de mercado” (p. 153 – 154). Neste processo de espraiamento do Mercado, Mosco cita alguns estudos que tentam abarcar este processo. Crawford, a partir do trabalho seminal de Sennet, descreve o modo como o valor de uso de certas mercadorias alcança um valor de troca no Mercado utilizando-se, para isso, valores não-mercantis, os quais deixam o produto mais atraente: Crawford empreende sua pesquisa sobre as relações sociais estabelecidas em centros de compras ou shoppings centers; ela ilustra este processo com o exemplo de um pote marroquino na vitrine de uma loja cuja decoração descontextualiza o objeto, tornando-o exótico, altamente estimulante e suscetível à compra.
Mercantilização do trabalho – Para Mosco, há dois conjuntos de processos relacionados à mercantilização do trabalho, os quais são relevantes para os estudos comunicacionais: o primeiro se refere ao uso de sistemas de comunicação e tecnologias para expandir a mercantilização do trabalho como um todo, inclusive na indústria da comunicação, a partir da crescente flexibilidade e controle pelos empregadores; o segundo se refere ao duplo processo pelo qual o trabalho é mercantilizado, na produção de bens e na produção de serviços. Todavia, com exceção dos trabalhos de Braverman, há uma tendência na ECP em negligenciar a mercantilização do trabalho.
De fato, as pesquisas de Braverman romperam com esta tradição, seus estudos partiram da premissa de que “o trabalho é constituído fora da unidade de concepção” (p. 157). Segundo ele, na mercantilização, o capital separa concepção e execução, habilita aqueles aptos a realizar uma tarefa, além de concentrar poder conceitual nas mãos de uma elite administrativa, cujos interesses representam os interesses do capital (aqui, o uso da chamada ciência administrativa, iniciada com Frederick Taylor, se faz bastante útil). Mosco, no entanto, reitera a contribuição de Braverman no que se refere à aplicação destas idéias em setores como prestação de serviços e informação: “Muitos de seus trabalhos constituem aquilo que Kuhn chamaria de ‘ciência normal’ [...] Isso inclui mapear o terreno contestado o ponto da produção, sua história e, especificamente, como a transformação do processo de trabalho foi experienciado diferentemente pela indústria, profissão, classe e raça. Trabalhos recentes, incluindo as avaliações acadêmicas e relatos de negócios pela imprensa, tendem a incorporar um interesse na forma como os meios de comunicação, assegurada pela melhoria constante na proficiência tecnológica, têm reforçado a mercantilização do processo de trabalho geral” (p. 157 - 158). O trabalho de Brasverman, porém não suprime a lacuna existente na EPC. Já se tornou tradição privilegiar as pesquisas de audiência e as análises textuais em detrimento dos estudos que enfocam o trabalho na produção mediática. Conforme Mosco: “Apesar da forte tradição da Economia Política e o amplo interesse entre economistas e políticos sobre as indústrias culturais, os estudos comunicacionais tendem a situar seu objeto na esfera do consumo e isso tem contribuído para um foco na relação entre a audiência e os textos. Economistas políticos da comunicação têm dado atenção considerável ao controle institucional sobre a produção da media e para a extensão do impacto sobre a audiência, incluindo a concepção do trabalho da audiência. Provavelmente mais atenção tem sido dada ao trabalho da audiência do que tradicionalmente entender o processo de trabalho nas indústrias da media” (p. 158). Outro percurso importante sobre as transformações no mundo do trabalho, a partir da introdução de tecnologia de comunicação e informação, é dado por Michael Hardt. Sua pesquisa contempla o percurso de Braverman e acresce à economia política uma visão cultural da história.
Processos alternativos na vida pública e privada
Muitos estudos em economia política, inclusive estudos comunicacionais, tem reiterado a perspectiva essencialista. Mosco apresenta aqui alguns caminhos para o desenvolvimento da práxis da EPC, identificando processos e estruturas teóricas alternativas capazes de se oporem ao essencialismo e fazer frente à mercantilização. Neste caso, ele cita o valioso trabalho de Offe sobre o papel do Estado como interventor no livre Mercado. Offe fala de dois processos “desmercantilização” e “remercantilização”, um oposto ao outro no que se refere à salvaguarda daqueles excluídos do Mercado. Segundo Mosco, “Desmercantilização consiste na criação de políticas sociais e programas para proteger a existência econômica de atores sociais, nas fileiras do capital e do trabalho, incluindo aqueles que estão próximos, mas são incapazes de participar da mercantilização ou mesmo de praticá-lo” (p. 162). A remercantilização, por sua vez, é a resposta do capital à desmercantilização. Ela consiste “em estratégias do Estado capitalista para resolver o problema da forma-mercadoria pela criação de condições políticas nas quais os sujeitos jurídicos e econômicos podem funcionar como mercadorias” (p. 162)
Processo social na vida privada – A expansão da mercantilização no cotidiano, na vida social em geral, criou uma série de questões dentre as quais o problema do público e do privado. Em vista de algumas confusões existentes em alguns estudos, sobretudo pelo alcance destes dois termos – além da relação que se estabelece com a mercantilização –, há que se definir melhor o que se entende por ambos. “Vida privada se refere especialmente ao processo de interação face-a-face, que Habermas tem se referido como domínio do mundo da vida (Lebenswelt) ou, na sociologia fenomenológica, como intersubjetividade. Processos baseados na vida privada costumam girar em torno das formações identitárias, amizade e parentesco [...] vida pública tende a ser os processos cívicos que reúnem pessoas para trocar idéias, governar a si mesmos, ajudar, resistir, opor e tentar criar alternativas para aquilo que Habermas chamou de organização de poder e dinheiro no ‘sistema’ mundo” (p. 163). Para Mosco, a mercantilização na vida pública e privada é objeto de alguns equívocos, sobretudo no que se refere ao privado. “Um dos grandes problemas é que o termo ‘privado’ assumiu o encargo de incluir tanto o mais íntimo da experiência humana quanto o comportamento do mercado no sistema da empresa transnacional” (p. 163). Trata-se de um problema premente em nossos dias e deveras complexo, como defende Sennet, já que as fronteiras entre o público, o privado e o mercado estão cada vez menos nítidas. Por outro lado, no que se refere à vida privada, há de se considerar a validade dos acoplamentos teóricos (ou diálogos) provenientes de setores como a microsociologia, além de muitos outros que trazem importantes discussões (críticas inclusive), à EPC. Mosco, neste caso, cita a contribuição de Stuart Hall: “Ao longo dos anos o interesse sobre a mediação entre o institucional e o pessoal assumiu uma considerável reflexão teórica [...] as grandes coletividades sociais que costumavam estabilizar nossas identidades – as grandes coletividades estáveis da classe, raça, gênero e nação – tem sido, em nosso tempo, profundamente minadas pelo desenvolvimento político e social” (p. 165). Tais contribuições estão previstas na própria estrutura epistemológica da EPC, segundo Mosco, advindo daí seu ponto mais importante e poderoso: “Uma meta das análises da economia política é fazer uso crítico dessas ferramentas para pensar a relação entre a vida privada e a experiência específica da mercantilização; entre a experiência de si e a identidade social no capitalismo” (p. 166).
Processo social na vida pública – Para Mosco, as teorias sociais e as pesquisas em Comunicação vêm assumindo o compromisso de entender a vida pública como forma de resistência à mercantilização. Daí a importância de trabalhos como o de Habermas sobre a esfera pública, já que fornece ferramentas (teóricas e conceituais) para restituir um debate histórico sobre a vida pública e a cidadania. “Seu trabalho [Habermas] atrai a atenção de pesquisadores em comunicação, particularmente, porque ele conclui que a comunicação, ou a ‘situação ideal do discurso’, fornece o fundamento para o êxito na esfera pública. Ele conclui também que a mercadoria da media de massa contemporânea, ao longo da expansão geral do consumismo e do estado burocrático, são as causas de seu declínio” [6] (p. 168). De fato, muita discussão sobre a esfera pública foi feita e a posição de alguns teóricos varia muito: Derrida, por exemplo, entende a opinião pública – consentimento gerado na esfera pública – como uma fantasmagoria; alguns ainda tentam dar novo fôlego, trazendo as mulheres e os proletários para tal espaço; outros a remontam ao cerne da questão democrática, a igualdade, a participação, a cidadania, enfim, conjuntos de práticas capazes de fazer frente à mercantilização.
Atrelado ao conceito de esfera pública, há um outro igualmente importante, caro às pesquisas comunicacionais, qual seja, o “interesse público”. Segundo Mosco, o termo remonta as leis de regulação governamental da indústria da comunicação: “a noção recebeu extensivo tratamento, incluindo uma crítica à sua ambigüidade, particularmente quando se colocou contra o Mercado” (p. 168). Estas indagações (tanto da esfera quanto do interesse público) são importantes porque suscitam o debate sobre o alargamento da mercantilização e, consequentemente, criam condições para se buscar alternativas. Embora a discussão sobre interesse público tenha se esvaído nos últimos tempos, tem crescido nos últimos anos o debate sobre a esfera pública. No entanto, dependendo do teórico, a esfera pública pode tanto abarcar a sociedade civil quanto ser abarcada por ela; pode, até mesmo, ser distinta dela. Pode ocupar um espaço físico, institucional ou eletrônico como o cyberspace. De todo o modo, o que é importante observar, segundo Mosco, é que tais processos são distintos daqueles centrados na vida privada; “da intimidade interpessoal e do Mercado, que promove a criação do valor de troca e da mais-valia” (p. 170). Recentemente, muitas pesquisas vêm tentando encontrar alternativas para pensar estes processos sociais. A maioria delas tem apontado para a media e a cultura, como caminhos capazes de manter alguma distância do Estado tanto quanto do Mercado. Esta distância, entretanto, é algo problemática, já que, em algum grau, ambos estarão presentes ou implicados. Mosco termina esta primeira parte do texto, chamando atenção à media pública, desde que re-interpretada: “O que nós chamamos de media pública é pública não porque ocupa um espaço separado, relativamente livre do mercado, mas porque é constituído fora de um processo de padronização particular, que privilegia o democrático sobre a mercantilização” (p. 172).
[1] Ou seja, incorporar noções periféricas (inclusive adversária) sem uma mudança substancial de seu fundamento.
[2] Em geral, esta rejeição consiste em atacar a premissa básica ou o fundamento de certa perspectiva teórica.
[3] Consideramos valioso este panorama teórico da EPC dado por Mosco. Tais exigências satisfazem a consideração kantiana (transcendente) sobre as condições de produção do conhecimento e os limites deste. Mosco, neste caso, não se mostra alheio a estas exigências, muito pelo contrário, as reforçam e as aplica em sua construção.
[4] A aparência neutra da produção de mercadorias (e da mercadoria em si), como um fato natural, é um consenso entre os economistas políticos clássicos. A novidade da economia política marxista consiste não apenas em observar a determinação da mercadoria sobre a vida social das pessoas (fetichismo), mas em observar a não-naturalidade (não-neutralidade) desta produção de mercadorias, entendendo tal produção como evento historicamente constituído.
[5] Como veremos na sequência, a exploração do trabalho a partir das indústrias da comunicação e media constitui um dos pontos fundamentais e problemáticos da EPC atual, porém poucos trabalhos na área têm contemplado esta dimensão.
[6] As críticas a Habermas, conforme Mosco, a respeito de seu conceito de esfera pública, giram em torno de suas peculiares características. Habermas entende esfera pública como algo negativo, burguês e branco, portanto, dificilmente democrático ou propriamente público (p. 168).
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