sábado, 3 de setembro de 2011

Ciborgue


A ideia que parece se apresentar como central neste texto é o problema do reposionamento político de grupos (em especial o feminismo) num novo cenário, denominado por alguns de pós-modernidade. Neste contexto, Donna Haraway apresenta o termo ciborgue como ideia provocadora -- e que a meu ver tem intenção crítica --, capaz de leituras interessantes numa época marcada por avanços tecnológicos no campo da medicina e da robótica e do fim das leituras dualistas (dialética) na Filosofia e Ciências Humanas e Sociais.
Tendo em vista o momento histórico em que foi escrito, o texto de Haraway apresenta elementos comuns a autores pós-modernos a exemplo de Baudrillard e alguns de seus leitores. Esta influência pode ser notada em seu aspecto formal (estilo irônico de escrita e a nomeação de palavras novas, de impacto, a exemplo do “ciborgue”, para assinalar novos fenômenos) tanto quanto no conteúdo. Obras como “À sombra das maiorias silenciosas” e “Simulacro e simulações”, semelhantemente a Haraway, demarcam:
a) o fim da sociedade e a emergência de uma “massa” alienada;
b) o parricídio coletivo, a fragmentação e o pensamento descentrado;
c) o fim da representação e o advento de um “hiper-real”: em que se tornam indistinguíveis as fronteiras entre o real e o virtual, o corpo e o espírito, além de todas as oposições clássicas.
Estas posições são assinaladas por Haraway em algumas passagens. Elas remetem ao fim das dualidades (da dialética e do próprio marxismo) ou das “meta-narrativas” históricas (iluminismo, cristianismo) como diria Jean-François Lyotard.

“[...] o ciborgue não espera que seu pai vá salvá‑lo por meio da restauração do Paraíso, isto é, por meio da fabricação de um parceiro heterossexual, por meio de sua complementação em um todo, uma cidade e um cosmo acabados. O ciborgue não sonha com uma comunidade baseada no modelo da família orgânica, mesmo que, desta vez, sem o projeto edípico. O ciborgue não reconheceria o Jardim do Éden, não é feito de barro e não pode sonhar em retor­nar ao pó. (p. 44)

No entanto, Haraway segue persistente no viés político que se torna o eixo delineador de seu manifesto, pois embora reconheça o momento de desestabilização ontológica, reconhece: “O ciborgue é nossa ontologia; ele determina nossa política” (p. 41).
Ciborgue, para Haraway não consiste em um conceito, mas, como ela reitera insistentemente, uma metáfora, uma figura... Tal estratégia evita que a autora seja alvo das próprias críticas, já que a metáfora ou qualquer outra figura de linguagem tentam “acercar” (aproximar-se de) os fenômenos e não determina-los definitivamente, como o faz o conceito.
Em sua crítica política contra a identidade feminista, Haraway se posiciona contrária ao pensamento dualista presente na concepção de muitos movimentos: idealismo vs. materialismo; homem vs. máquina; corpo vs. espírito; homem vs. mulher etc. Para ela, o ciborgue, como figura crítica, é a “favor da confusão de fronteiras” (p. 42) Não faz sentido, portanto, hoje tentar encontrar uma unidade na ideia de “mulher” (conceito escorregadio) já que esta é bastante ampla e abstrata: por esta ideia perpassam as reivindicações de inúmeros grupos de mulheres (negras, chicanas etc) constituindo, no limite, a “matriz das dominações que as mulheres exercem uma sobre as outras”. Ao invés da identidade a autora opta pela “coalização” (p. 52-53) a constituição de uma luta política com base na afinidade.
Talvez esta seja a grande diferença de Haraway com grande parte do pensamento pós-modernos como Baudrillard, os quais acreditam que uma política (mesmo de grupo) já não seja mais possível e que o horizonte tecnológico foi completamente cooptado pelas forças do capitalismo.
Em minha leitura, a força expressiva deste manifesto advém da incorporação de tecnologias (não apenas informacionais) no corpo político, seguindo as leituras de Foucault sobre os modos de subjetivação para o cuidado de si.

Referências
HARAWAY, Donna; Kunzru, Hari; SILVA, Tomaz Tadeu (org.) Antropologia do Ciborgue - As vertigens do Pós-Humano. Belo Horizonte: autêntica, 2000.


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