sábado, 3 de setembro de 2011

O legado "teórico" dos estudos culturais


HALL, Stuart. Estudos Culturais e seu legado teórico. In. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed UFMG, 2003, p. 199-218.

Neste texto-reação pretendo discorrer sobre a pergunta: qual o grande legado dos estudos culturais?
Interpretando as palavras de Stuart Hall, entendo que este legado não é de natureza teórica (stricto senso), algo como uma estrutura híbrida, comum às teorias culturalistas, suscetível aos modismos teóricos, [1] mas uma postura crítica que fundamenta os estudos culturais desde os seus primórdios. [2] Entenda-se postura crítica aqui como vigilância epistemológica responsável pela produção de “relações instáveis” [3] frente a outras teorias (psicanálise, marxismo, feminismo, etc), o que mantém os estudos culturais sempre “em aberto”, inconcluso, em diálogo, evitando seu fechamento. Tal legado outorga que, independente do lugar ou do momento histórico em que os estudos culturais se desenvolvem (ou venham se desenvolver), estes não devem nunca perder de vista o seu caráter negativo, que coloca sob tensão as diversas teorias e tendências teóricas. É munido de tal perspectiva que podemos interpretar os “perigos” de que fala Hall ao se referir ao “formalismo” e à institucionalização dos estudos culturais em departamentos ou cátedras universitárias.
Sobre tal formalismo, Hall (Idem: 216) diz que “formalizar questões críticas do poder, história e política”, como acontece nos estudos culturais norte-americanos, pode “acabar com elas [as questões críticas]”. A formalização dos estudos culturais, neste caso, equivale à sua própria aniquilação (destruição de um suposto núcleo duro dos estudos culturais). Corroborando com isso, ainda no final do texto, o autor reitera seu rechaço pela idéia de um conhecimento completo ou “acabado” para os estudos culturais:

Volto à dificuldade de instituir uma prática cultural e crítica genuína. Que tenha como objetivo a produção de um tipo de trabalho político-intelectual orgânico, que não tente inscrever-se numa metanarrativa englobante de conhecimentos acabados, dentro de instituições (Idem, Idem: 217).

Entendo que tal postura crítica (ou negativa) esteja relacionada ao projeto político que subjaz os estudos culturais, mas também à influência foucaultiana no pensamento do Hall. Estes dois aspectos acabam por considerar como irrevogável e fundamental a multiplicidade das relações de poder presente na sociedade bem como as diferentes estratégias de apropriação da cultura pelos agentes sociais (instituições e sujeitos). Daí a impossibilidade de hipostasiar os estudos culturais a partir de um programa único (um corpo coerente e sistemático de idéias e ações: uma práxis una). Ao contrário disso, penso que os estudos culturais operem melhor (seja muito mais produtivo) se encarados como um jogo de tensões, um conflito dentro e fora dos institutos de pesquisas, uma guerra teórica que se dá nos campos lógico tanto quanto político, aberto à incorporação de problemáticas sociais as mais diversas, a objetos aparentemente estranhos (como a AIDS), de modo a garantir uma legitimidade indisciplinar. Se por um lado a epistemologia ausente dos estudos culturais (como descrevemos) pode criar uma espécie de problema institucional onde são desenvolvidos (o que comprometeria, por exemplo, o financiamento destas pesquisas e suas formas de avaliação), por outro lado, tal indisciplina é a única garantia de se realizar pesquisas descompromissadas com os interesses de grupos ligados ao Governo ou ao Mercado.
Esta tentativa de se esquivar de um poder disciplinar sobre os estudos culturais está bastante presente em Hall. Aliás, é por este motivo que ele evita “contar uma história” dos estudos culturais; em vez disso, recorre ao método genealógico de Foucault que busca não uma origem ou uma gênese estável, um começo tranqüilo que se estende por toda uma linha histórica contínua e ininterrupta, mas o momento em que um discurso emerge, sobrepondo-se aos outros, obviamente, não sem um conflito ou uma disputa na ordem do discurso (esta é a concepção genealógica de Foucault). [4]

Os estudos culturais abarcam discursos múltiplos, bem como numerosas histórias distintas. Compreendem um conjunto de formações, com suas diferentes conjunturas e momentos no passado. Gostaria de insistir na variedade de trabalhos inerentes aos estudos culturais. Constituindo sempre num conjunto de formações instáveis, encontravam-se “centrados”, apenas entre aspas [...] (Idem, Idem: 201)

Contra esta tendência estabilizante dos estudos culturais, entendo que seja preciso, como sugere o autor, retomar o legado gramsciano, especialmente o conceito de “intelectual orgânico” a quem Hall atribui duas tarefas distintas, porém complementares:
1) ter um conhecimento “superior” àquele do intelectual tradicional – como ele observa, “se jogarem o jogo da hegemonia terão que ser mais espertos do que ‘eles’” (Idem, Idem: 207);
2) transmitir este conhecimento aos intelectuais “não-profissionais” – trata-se de ampliar o campo de batalha, descentralizar os centros de pesquisas, fazer disseminar, repercutir um conhecimento para toda a sociedade. A prática discursiva (falar, transmitir saberes, fazer proliferar uma idéia) constitui aqui uma arma imprescindível.
A este intelectual orgânico, trabalhador do bloco histórico e da hegemonia, acrescentaria ainda, o intelectual público. Sua tarefa é a mesma do intelectual orgânico, mas dele se diferencia já abre a possibilidade de um diálogo múltiplo e, melhor, sem as amarras institucionais.

P.S. - Para evitar a institucionalização, procurei grafar os estudos culturais neste texto em caixa-baixa.


[1] Modismo teórico aqui entendido como vício acadêmico que, grosso modo, reduz um período histórico a uma teoria, por exemplo, o marxismo aos anos 40/50, o feminismo e o estruturalismo aos anos 60, o pós-modernismo, segundo François Lyotard, a partir de meados dos anos 80... Embora julgue importante o momento histórico na confecção de uma teoria, a meu ver, esta tendência pode não só por reduzir a complexidade de um pensador (e de suas obras) a uma “escola” de pensamento que, muitas vezes, o descaracteriza (Walter Benjamin pode ser alojado na Escola de Frankfurt? Michel Foucault é um historiador ou um estruturalista?); sobretudo, tal reducionismo ignora uma questão de fundo importante que é o compromisso (ou a fidelidade) do intelectual contra as estruturas de dominação. Penso eu que tal compromisso seja atemporal, não um modismo ou algo passageiro, mas aquilo que subjaz toda e qualquer produção teórica. Daí os estudos culturais caracterizarem-se mais como projeto político do que tendência teórica.
[2] Evitarei aqui falar em gênese, como veremos mais adiante.
[3] A expressão é de Jacqueline Rose (Apud Hall, 2003: 209).
[4] A constituição de uma epistème pode ser verificada não só pelos saberes que a conforma, mas principalmente pelo que ela exclui (é importante lembrar o interesse de Foucault pelos elementos marginais, por aquilo que é excluído dos ordenamentos). Daí a sugestão de Hall: “A única teoria que vale a pena reter é aquela que você tem de contestar, não a que você fala com profunda fluência” (Idem: 204).

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