sábado, 3 de setembro de 2011

A escritura e a Literatura


A idéia que me pareceu central tanto no texto de Deleuze quanto na entrevista de Silviano é a função da escrita literária (artística). Tal função seria, a meu ver, a de criar “novos mundos”, mundos possíveis, segundo Deleuze, que atravessa o “vivível” (o mundo da fabulação, da ficção, da invencionice) e o “vivido” (aquilo que de fato se viveu, empiricamente). Entre estes dois mundos, muitos outros mundos estão (ou estavam) à espera para serem subjetivamente experimentados seja por meio da escrita, seja pela leitura.
Na criação destes novos mundos, vemos encetar também um elemento libertador. A linguagem (entendida como forma, estrutura, dispositivo ou “lógica de algo”), como aquilo que nos familiariza às coisas do mundo [1] produz incessantemente um mundo ordinário e, portanto, inerte. O mundo ordinário é o mundo dos protocolos e das regras (sociais, culturais, morais, gramaticais) que delineiam a vida das pessoas e estancam seu vitalismo, condenando a dispersão ou transbordamento de vida. Sob este aspecto, a própria fragmentação, como observa Silviano, “nossa experiência social contemporânea” (COELHO, 2011, p. 55), muitas vezes é conjurada em nome da unidade, de um princípio “estranho” da não contradição. Somente a Literatura poderia tornar novamente estranho este mundo ordinário, subvertê-lo, portanto. Somente a Literatura poderia libertar-nos do poder estabilizador (centralizador, totalitário) da linguagem e dos clichês.
Tal discussão nos joga de volta à nossa primeira aula, mais precisamente, ao primeiro texto desta disciplina: “A aula”, de Roland Barthes. Naquela oportunidade, lembro que a pretensão de Barthes, ao apresentar o programa de seu curso denominado “semiologia”, não consistia na descrição da língua, dos modelos estruturadores ou das regras lingüísticas que constituem um grupo de falantes. O que Barthes procurava em sua semiologia era as trapaças da linguagem, o ponto em que esta sai de seus próprios sulcos (como nos fala Deleuze). Vejo aí algo muito promissor em termos de pesquisa: libertar ou criar mundos plurais e ao mesmo tempo singulares. Ainda: vejo aí um elemento transformador em termos sócio-culturais. Para dar um rápido exemplo cito Paulo Freire, pedagogo que conjugava ao seu processo educativo (aprender a escrever e ler o mundo) a descrição de um mundo novo. Ao “dar a palavra” ao alfabetizando, Freire oferecia a possibilidade um mundo mais afetivo, aberto e atento às formas do poder expropriativo do comum. Freire chamava isso de educação crítica. O que fazia ele senão propor uma “libertação” da linguagem por meio dela mesma?


[1] Mesmo as coisas mais absurdas ou bizarras tais como a pobreza, as injustiças sociais, o sucesso de lixos culturais da mídia etc. nos parecem naturais quando reiterada numa sintaxe (estrutura narrativa) que se tornou clichê.

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