O problema que tanto Foucault quanto Deleuze apresentam em seus respectivos textos é a presença de dispositivos de controle em nossa sociedade. Para Deleuze, vivemos atualmente numa “sociedade do controle”, expressão designadora de uma espécie de “paradigma” que impõem uma lógica particular às atuais práticas sociais, tanto diferentes das “sociedades disciplinares” (do século XVIII ao XX) quanto, em alguma medida, das “sociedades de soberania” (comum aos regimes políticos imperiais). A característica fundamental desta sociedade do controle, segundo Deleuze, é a vigilância permanente não apenas de si, mas também do Outro. [1] Tal vigilância, que na sociedade disciplinar era função de um poder centralizado, está agora pulverizado nos indivíduos e nos diversos grupos que, por sua vez, dedicam-se ao controle da dispersão, dos fluxos, dos devires, de onde, supõe-se, podem daí extrair alguma vantagem. Para dar um exemplo contemporâneo, o controle da imprevisibilidade da criação é o que está no centro dos atuais direitos autorais da internet (copyrights, creative common, etc): controlar este “direito” significa controlar os fluxos dispersivos da criatividade e se apropriar da principal fonte de riqueza nos dias atuais, o capital cognitivo. No entanto, uma vez que estamos imerso nesta sociedade (nesta lógica) nossa compreensão sobre ela ainda é incipiente.
Mas se Deleuze fala do controle enquanto um paradigma social, Foucault particulariza este controle ao nível da linguagem – não apenas a linguagem em si, técnica que evita a dispersão do sentido [2], mas a linguagem indissociada de suas evidenciais materiais (as instituições, os sujeitos, os discursos, os sistemas econômicos, jurídicos, políticos, etc). Em aulas anteriores constatamos esta confusão: de um lado o poder da linguagem (a língua em si, tecnologia ou “máquina” de representar), de outro a externalidade da língua (o uso que dela fazem os supostos sujeitos da enunciação, presente nos estudos sobre o discurso ideológico, persuasivo, etc). Uma vez que o interesse de Foucault não é pela linguagem, mas pelo poder, ele trabalha nestes dois âmbitos chamando atenção tanto para as “falas perigosas” – aquelas que põem em risco um ordenamento político (falas como a de um Roland Barthes quando reivindica trapacear a língua, fazendo vir à tona o sentido enquanto pathos, a literatura como elemento dispersivo) [3] – quanto os sistemas capazes de controlar este perigo. Sob este tópico, Foucault descreve 3 grupos de “procedimentos de controle do discurso”: 1º) a interdição, a separação, e a “vontade de verdade”; 2º) o comentário, o autor e a disciplina e, finalmente; 3) ritual. Tais mecanismos estão “capitarmente enraizados” em nossa sociedade, nas mais diversas instituições (religiosas, escolares, laborais, militares, etc.); eis que Foucault, então, propõe analisar tais mecanismos (o funcionamento do poder) a partir do discurso que conformam as instituições e as quais também a reproduzem.
Cabe salientar que Foucault toma a análise do discurso de uma maneira particularmente diferente dos estudos lingüísticos convencionais. [4] Primeiramente, Foucault entende discurso não como efeito de sentido dado pela interpretação de um conjunto de enunciados (fatos lingüísticos ou semióticos) cujo objetivo é a busca ou a decifração de significados. Para Foucault, discurso passa a configurar um conjunto de práticas, materiais ou não, incluindo signos, mas não reduzindo-se apenas a eles. Ou melhor: em Foucault, discurso passa a ser não apenas as evidências materiais do enunciado (atos de fala, arquivos, obras artísticas) ou as formas de pensamento (ideologia, cultura, moral, etc.), mas as próprias ações humanas que se inscrevem ou não numa ordem vigente (o interesse de Foucault, vale lembrar, é pelos enunciados excluídos ou “rarefeitos” da ordem do discurso por efeito do poder).
[...] a análise do discurso, assim entendida, não desvenda a universalidade de um sentido; ela mostra a luz do dia o jogo de rarefação imposta, com um poder fundamental de afirmação. Rarefação e afirmação, rarefação, enfim, da afirmação e não generosidade contínua do sentido, e não monarquia do significante (Foucault, 2009: 70).
Assim, Foucault propõe duas perspectivas para análise do discurso e, doravante, do poder: a crítica e a genealógica. Enquanto a primeira procura “cercar as formas de exclusão, da limitação, da apropriação” (Idem: 60), as quais emergem num momento histórico determinado e são deslocados em outros períodos, configurando em cada um deles certas práticas sociais, a perspectiva genealógica estuda a formação do discurso, “ao mesmo tempo dispersa, descontínua e regular” (Idem: 65-66); trata-se, segundo Foucault, de observar a constituição de séries, conjuntos discursivos marcados por alguma regra de formação e alguma regularidade, a estrutura ordenadora ou a matriz discursiva da qual emergem os discursos (ou que nela encontram correspondência), as quais permitem não apenas dizer algo (as falas permitidas), mas também interditar (as falas perigosas), haja vista os sistemas de poder implicados.
Tanto numa quanto noutra, evidencia-se aqui o desejo de Foucault de tentar não apenas compreender o funcionamento do poder (ao nível da linguagem, a partir de seus vestígios: o discurso) como também sair de suas amarras. Lendo a expressão deleuziana “Por toda parte o surf já substituiu os antigos esportes” (1992: 223), podemos indagar se o mais importante hoje, na sociedade do controle, não são as manobras, às formas de se esquivar desse poder que tenta nos engolir. Ou como anteriormente expressou Barthes: trapacear a língua.
Referências
Barthes, Roland. Aula. São Paulo: Cutrix, 2004.
Foucault, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2009.
Deleuze, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 219-226.
[1] Lembremos aqui a idéia de poder microfísico e multidirecional em Foucault: não apenas de cima para baixo (opressão) ou de baixo para cima (resistência), mas um poder que se embrenha de fora para dentro e de dentro para fora, abaixo, acima e ao lado dos aparelhos de Estado, a um nível elementar e cotidiano.
[2] Aqui evocamos a Aula de Roland Barthes (2004: 14), no momento que este diz que “Na língua, portanto, servidão e poder se confundem inelutavelmente”. É desta “servidão” que trata, especificamente, Foucault.
[3] É tal ordenamento que garante a verdade do discurso (e, portanto, a realização do poder) num determinado contexto. Sobre isso ver comentário de Foucault sobre M. Canguilhem na página 34. “antes de poder ser declarada verdadeira ou falsa, [...] deve encontrar-se ‘no verdadeiro’”.
[4] Tal proposta é semelhante a de Barthes (2004: p. 28) quando este reivindica uma “nova” semiologia, frente à semiologia convencional, uma semiologia que “desconstrói” a lingüística.
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