Neste texto-reação saio em defesa de Stuart Hall contra as argumentações de Marcondes Filho segundo o qual o uso de conceitos como representação e significação por parte daquele o torna um “dinossauro ou reincidente” (2008, p. 32) frente à atual conjectura intelectual. Em meu entendimento, tais conceitos oxigenam os estudos sobre a cultura e a sociedade a partir de baixo (ou seja, a partir daqueles que vivenciam ou sentem na pele a dominação) combatendo uma tendência idealista que propõe evitar questões prementes como a inserção problemática de indivíduos no sistema produtivo, o preconceito racial, além de diversos tipos de estigma e discriminação. Estas questões, longe de serem nostálgicas (ou tratadas como simples saudosismo teórico) são bem concretas e atuais não podendo ser desconsideradas, em hipótese alguma, na composição do quadro teórico comunicacional que, não raro (talvez pela indisciplina que lhe é inerente), entrega-se a modismos teóricos responsáveis pela emergência de objetos de pesquisa fora da órbita brasileira.
Significação/Representação: atualização do problema da ideologia
Embora muitos autores reconheçam o anacronismo do conceito de ideologia, sobretudo após as críticas de seu reducionismo na versão marxista, [1] é inegável sua importância na atualidade como ponto-de-partida para discussões mais amplas (diria epistemológica) a exemplo aquelas empreendidas no começo do século por Karl Mannheim quando este, no âmbito da sociologia do conhecimento, se pergunta: “nossas pesquisas servem a quem (instituições, pessoas)?” [2] Na verdade, Mannheim está chamando atenção para as condições materiais que, embora não seja a única fonte determinante para a produção e reprodução de ideias (ele se refere não só a hábitos e costumes, mas teorias e conceitos), [3] não podem ser desconsideradas. A preocupação de Mannheim é justa não apenas porque atenta para os propósitos (interesses) que subjazem todas as pesquisas, mas, principalmente, porque é a partir destes mesmos propósitos que se produzem teorias e críticas, as quais servem de fonte de legitimação/deslegitimação de objetos. Em países periféricos ao sistema capitalista como o Brasil vemos proliferar objetos advindos de teorizações européias (sobretudo Paris), muito bem ajustados às demandas de lá, porém descompassados com as necessidades (ou problemas) nacionais. Às vezes a importação teórica é tão completa que não se questiona a pertinência de tal enxerto na formação histórico-social e os poucos que ainda o fazem são condenados ou julgados “fora de moda”, reminiscência de uma velharia comunista ou especulação esclerosada de intelectuais do século passado. Podemos nos perguntar: a pobreza diminuiu? A discriminação e o estigma foram superados?
Atravessando estas questões vejo a presença de Stuart Hall como intelectual que costura este abismo: atravessa a filosofia da diferença e toda “moda pós-” (estruturalista, modernismo, etc) para buscar nestes setores alguma contribuição aos problemas sociais predominantes em cada formação social. Sua releitura da ideologia em Althusser, como uma “determinação sem correspondência necessária” com o aspecto econômico, [4] permite a ele observar a determinação da raça como elemento problemático de inserção do negro junto às forças produtivas do capitalismo. [5]
Para montagem de seu esquema discursivo, Hall apela para os conceitos semióticos de “representação” (evidências materiais, rastro dos signos) e “significação” (processo de desvelamento de algo suposto, como na antiga tradição da ideologia marxista, embora não fale em falsa consciência). Ao fazer isso, Hall inspira os injustiçados (aqueles que, como ele, sofrem na pele os preconceitos e a opressão étnica, social, no dia-a-dia) a buscar respostas. O uso destes recursos conceituais (representação, significação) por parte de Hall está em sintonia (faz-se coerente) com seu programa de trabalho (intelectual) que, assim como os próprios Estudos Culturais, é mais bem caracterizado como projeto político: formação de consensos nos lugares em que sua fala é pronunciada. [6] Desconsiderar esta dimensão (apoiando-se apenas na teoria) não é só um erro, mas uma grave distorção, pois deixa de fora seu aspecto mais importante, aquilo que faz diferença em relação às demais teorias da cultura.
Não vejo Hall culpabilizando “manobras perversas dos dominantes”, mas se o faz acredito que seja com intenção retórica (convencimento), realizando aquilo que Habermas, nas palavras de Marcondes Filho, diz ser a chance da democracia: “[...] criar uma base de discernimento político que permita uma consciência autônoma e crítica no seio da massa popular” (2008, p. 30). Condenaremos Hall por seu apelo neo-pragmatisma (Rorty)? Pela cooptação (ou corrupção) das massas ignóbeis (tal como Sócrates)? O que realmente está em jogo quando Marcondes Filho classifica Hall como um teórico inábil?
Marcondes Filho considera Hall o “homem da prática” (Idem, p. 29) que, no campo teórico-intelectual, “demonstra suas maiores debilidades” (Idem, p. 28). Hall, ao menos, deixa suas opções bem explícitas – “[...] assumo o risco do ecletismo teórico ao afirmar que estou inclinado a preferir ser ‘correto porém não rigoroso’, a ser ‘rigoroso, mas incorreto’” (Hall, 2003, p. 155) – algo que Marcondes Filho, em seu debilitamento prático, não o faz como homem da teoria.
De que lugar social fala Marcondes Filho? Que forças (ou interesses) o impelem a dizer o que diz? Retomando mais uma vez Foucault: o que está em jogo? Os interesses dos intelectuais orgânicos podem não ser tão nobres quanto a dos intelectuais sistêmicos, mas certamente as vozes que os convocam advém de lugares sociais (ou vivências) diferentes evidenciando bens preciosos em disputa (“capital social”, como diria Bourdieu: títulos, condecorações, distinções, reconhecimentos...)
A opção prática, como nos ensina Hall (como homem da prática), nos faz lembrar que, na maioria das vezes, as condições lógicas (aplainadas pelas condições históricas e por conceitos e teorias) não são exigências tão imprescindíveis para a delimitação epistemológica quanto as condições políticas (ou práticas). Talvez não seja o caso de modernizar Stuart Hall, mas de pós-modernizar a teoria da ideologia.
Questão da recepção
Se não há nenhuma garantia de que o material linguístico produza uma mensagem assimilável segundo as intenções do emissor, se é insignificante o papel da mensagem (ou do significado imposto pelo emissor) na produção da comunicação, se como diz Umberto Eco “[...] já não se tem mais nenhuma importância se o que se transmite na TV é verdadeiro ou não, importa, antes que a emoção sentida seja verdadeira”, [7] então por que criticar Hall? Não podemos lê-lo como uma simples e inocente diversão?
Referências
HALL, Stuart. O legado teórico dos Estudos Culturais. In Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: EdUFMG, 2003.
____. Significação, Representação, Ideologia. Althusser e os debates pós-estruturalistas. In Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: EdUFMG, 2003.
MARCONDES FILHO, Ciro. Stuart Hall, cultural studies e a nostalgia da dominação hegemônica. Revista Communicare, Vol.8. N.1, 2008, p.25-42.
[1] Instância subjetiva de reprodução das condições materiais, campo de atividade humano determinado pela infraestrutura econômica.
[2] Remetemos aqui ao livro “Ideologia e Utopia”.
[3] Anos mais tarde, Bourdieu irá tratar como “campo” (território social onde se desdobram lutas pela apropriação de bens sociais e culturais como o prestígio, as quais podem, posteriormente, converterem-se em bens econômicos).
[4] A posição de Hall é intermediária: entre Marx que diz que há uma correspondência necessária e Paul Hirst de que “não há necessariamente qualquer correspondência”. Para Hall isso significa não há lei que garanta que a ideologia de uma classe esteja gratuita e inequivocadamente presente ou corresponda à posição que essa classe ocupa nas relações econômicas de produção capitalista. A alegação da ‘não garantia’ – que rompe a teleologia – também implica que não existe necessariamente uma não correspondência” (Hall, 2003, p. 156).
[5] É interessante observar a ojeriza ou aversão de intelectuais às idéias de Hall sobre raça. No texto em questão, este fato (imprescindível na vida intelectual de Hall) é completamente ignorado. Por outro lado, prefere-se isolar e criticar sua teoria a compreendê-la no contexto de uma luta política e social (em âmbito discursivo) em andamento.
[6] Esta posição é bem explícita no texto “O legado teórico dos Estudos Culturais. In HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: EdUFMG, 2003”. Seu legado teórico dos Estudos Culturais é seu projeto político, uma ênfase maior à prática do que a teoria.
[7] Apud Marcondes Filho, 2008, p. 33
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