de NANCY, J-L
Tradução de Eduardo Yuji Yamamoto
Tradução de Eduardo Yuji Yamamoto
O estado presente do mundo não é de uma guerra entre civilizações. É uma guerra civil: é a guerra interna de uma cidade, de uma civilização, de uma cidadania que está se desdobrando até os limites do mundo e até a extremidade de seus próprios conceitos. Na extremidade, um conceito se quebra, uma figura distendida se explode, uma ruptura surge.
Não é também mais uma guerra entre religiões, ou uma guerra dita de religiões, é uma guerra interna do monoteísmo, esquema religioso do Ocidente que em si mesmo traz uma divisão em seus limites e em suas extremidades: do Ocidente ao Oriente até a ruptura no centro do poder divino. Logo, o Ocidente seria o enfraquecimento do divino, em todas as formas do monoteísmo seja pelo ateísmo ou pelo fanatismo.
O que acontece conosco é o enfraquecimento do pensamento de um “Ser” e de um destino único do mundo: isto se enfraquece em uma ausência de destino, em uma expansão ilimitada da equivalência generalizada ou, em contrapartida, nos sobressaltos violentos que reafirmam a onipotência e a onipresença de um “Ser” transformado – ou retransformado – em sua própria monstruosidade[1]. Como, enfim, ser sério, absolutamente e incondicionalmente ateus capazes de ter razão e verdade? Como, não sair da religião – pois no fundo, e isto é fato, as maldições dos loucos não podem nada (elas têm o mesmo indício, como “Deus” gravado na nota de dólar) – mas ao sair deste pensamento unificado, o que resta é o nosso pensamento (a história, a ciências, o Capital, o Homem e/ou a sua Nulidade...). Enfim, como ir ao fim do monoteísmo e de seu ateísmo constitutivo (ou poderíamos chamar de seu “ausenteísmo”), para compreendê-lo, por trás de sua fraqueza, o que seria capaz de extrair do nilismo, de seu interior? Como pensar o “nilismo” sem retornar à monstruosidade onipresente e onipotente?
A ruptura formada é a da razão, da verdade ou do valor. Todas as formas de rompimento, de ruptura social, econômica, política, cultural tem em si a condição de possibilidade e seu esquema fundamental. Não se pode ignorar: O desafio primordial deve ser tido como um desafio de pensamento, inclusive no que se refere às suas implicações materiais (a morte por AIDS na África ou a miséria na Europa, as lutas pelo poder nos países Árabes, por exemplo, dentro de uma centena de outros exemplos). A estratégia política e militar é necessária, o equilíbrio econômico e social também, a luta pela justiça, a resistência e a revolta também são necessárias. Mas é preciso refletir sobre um mundo que deixa de maneira lenta e ao mesmo tempo brutal todas as suas definições adquiridas de verdade, razão e valor.
O enorme desequilíbrio econômico, quer dizer o desequilíbrio da vida, da fome, da dignidade, do pensamento é o resultado do desenvolvimento de um mundo que não se reproduz mais (que não acompanha mais nem a sua própria existência, nem a sua própria razão), mas que produz uma falta de limite de sua própria globalização, tal que ela parece implodir ou explodir: pois no centro a falta de limite cruza outro caminho que é a desigualdade do mundo nele mesmo, uma impossibilidade de se dotar de razão, de valor, de verdade, uma precipitação na equivalência geral que torna progressivamente a civilização uma obra morta. Não somente uma forma de civilização, mas a civilização, a história do homem e talvez tenha aquela natureza. E não há outra forma no horizonte, nem nova, nem antiga.
De uma parte à outra se vê cobrir a “ferida” com as “bandagens” habituais: deus ou dinheiro, petróleo ou poder, informação ou encantamento, o que acaba sempre significando uma ou outra forma de onipresença ou onipotência.
Onipotência ou onipresença é sempre o que se requer da comunidade ou o que se vai procurar nela: Supremacia e intimidade, a consciência sem falha e sem aparência. Deseja-se o “espírito” de um “povo” ou a “alma” de uma assembléia de “fiéis”, deseja-se a “identidade” de um “indivíduo” ou sua “propriedade”.
Não basta, e longe disso, de denunciar aqui um imperialismo e ali um integralismo (designações que se pode, aliás, por em quiasmos). Estas denúncias são justas, como é justo denunciar o efeito da exploração e da humilhação de populações inteiras, rendidas e desta forma disponíveis a outras explorações. Mas enfim, desde 1939, as guerras não têm mais lugar como os confrontos no interior de um mundo que lhe dá lugar (mesmo que este lugar seja desastroso): a guerra se tornou a guerra de um mundo que se desmorona, porque ele sente falta de ser ou de fazer o que deve ser: um mundo, quer dizer um espaço de razão, fez a razão perdida ou a verdade vazia[2].
Falar de “razão” e de “verdade” no centro da agitação militar, de cálculos geopolíticos, de sofrimentos, de grotescas hipocrisias o engano não é “idealismo”: é abordar a mesma coisa.
De um lado a outro a ruptura profunda do mundo com o nome de “globalização”, assim a comunidade está separada e confrontada a ela mesma. Anteriormente, as comunidades podiam refletir sobre elas mesmas, distintas e autônomas sem procurar associar-se a uma humanidade genérica. Mas, quando o mundo finito se tornou mundial e o homem finito se tornou humano (é neste sentido também que ele se torna “o último homem”), quando “a” comunidade se põe a hesitar em uma estranha unidade (como se devesse ter só uma essência única do comum), então “a” comunidade compreende que está escancarada – ruptura escancarada sobre a unidade e sobre sua essência ausentes – e ela confronta nela mesma esta ruptura. É a comunidade contra a comunidade, estrangeiro contra estrangeiro e família contra família, ferindo-se a si mesmas sem possibilidade de comunicação nem de comunhão. O monoteísmo se confronta nele mesmo, como o teísmo e como o ateísmo, e por esta razão é o esquema de nossa condição atual.
Que este confronto consigo mesmo pudesse ser uma lei do “ser-em-comum” e sua mesma razão, eis o que está no programa do trabalho do pensamento: que o confronto, compreendendo-se ele mesmo, compreende que a destruição mútua destrói até mesmo a possibilidade de confronto, e com ela a possibilidade do “ser-em-comum” ou do “ser-com”.
Pois o “comum” é o “com”, o “com” designa o espaço sem a onipotência e sem a onipresença. No “com” só pode haver as forças que se confrontam em razão de seu jogo mútuo e as presenças que se afastam por causa do que elas tendem sempre a se tornar outra coisa menos as presenças puras (objetos dados, pessoas conformadas em suas certezas, mundo da inércia e da desordem).
Como tornar capazes de olhar à frente nossa ruptura e nosso conflito, não para assustar, mas para tirar, apesar de tudo, a força de nos confrontar, primeiro conhecendo a causa – a maneira que realmente nos divide – senão o confronto só é um empurrão confuso e cego?
Entretanto, olhar à frente um abismo e confrontar-se através do olhar não são sem comparação, pois sem o olhar do outro nunca se abrirá o insondável: sobre a estranheza absoluta, sobre uma verdade que não se pode confiar, mas a qual é necessário ter.
Tripla estranheza: aquela do outro distanciado, aquela do mesmo retirado, aquela da história pronta versos a inacabada, talvez a insustentável.
É necessário se posicionar contra uma moral altruísta muito citada hipocritamente, para a seriedade da ligação do estranho, do qual há a condição estrita da existência e da presença.
É preciso dar valor ao que, diante de nós, nos expõe a uma influência sombria da nossa própria transformação e da nossa própria decadência.
Não se trata nem de culpabilizar o Ocidente nem de reivindicar um Oriente mítico: trata-se de pensar um mundo nele mesmo e por ele mesmo fraturado, uma fratura que provém do mais isolado de sua história e que deve bem, de uma maneira ou de outra, piorar e talvez - quem sabe? – “piorar pouco”, constituir hoje sua razão obscura, não uma razão obscurecida, mas do qual o obscuro é o elemento. É difícil, é necessário. É nossa necessidade nos dois sentidos da palavra: é nossa pobreza e nossa obrigação.
O texto que se segue foi publicado na Itália, onde foi produzido nas condições que são indicadas em seu corpo (Ele aparecerá em prefácio para uma nova edição de A comunidade inconfessável de Maurice Blanchot, em uma tradução revista, nas edições SE de Milão, eu agradeço a Alessandri Fanfoni por seu convite (p.22).
As edições SE, de Milão me pediram para apresentar uma tradução revista de A comunidade inconfessável de Maurice Blanchot. O público italiano, disseram-me, não tem uma visão clara das circunstancias nas quais este livro foi escrito e publicado, sendo tudo expresso por seu autor fazendo eco a seu artigo publicado por mim com o título A Comunidade Ociosa. Este pedido me pareceu apresentar um interesse bem específico, pois me fez retornar a um episódio do qual eu negligenciara de mensurar exatamente os desafios.
A história de textos filosóficos sobre “a comunidade” nos anos 80 merecia ser escrita com precisão, pois ela é, mais em uns do que em outros, reveladora de um movimento profundo de um pensamento na Europa naquela época – um movimento pelo qual, nós somos ainda levados, embora em um contexto totalmente diferente, no qual o assunto da “comunidade” ao invés de se tornar mais claro, parece afundar-se em uma obscuridade singular (sobretudo no momento no qual escrevo estas linhas: em meados de Outubro de 2001). Em A comunidade ociosa eu evocara o início desta história, mas de maneira muito breve. Eu volto aqui, à ocasião deste prefácio, com o recuo do tempo que me permite melhor compreendê-la.
Ao mesmo tempo, o duro contexto que acabo de me lembrar – as disputas, as guerras comunitárias de todas as espécies e de todos os “mundos” (O Antigo e o Novo, o Desenvolvido e o Subdesenvolvido, o Norte e o Sul, o Leste e o Oeste) - torna talvez útil redefinir um movimento que só restaura o pensamento, isto porque ele pertence à sua existência.
Em 1983, Jean Christophe Bailly, propôs um tema para um futuro número da revista Aléa que seria publicado em Christian Bourgeois[3]. O tema proposto foi assim formulado: “A comunidade, o número”.
A elipse perfeitamente alcançada deste enunciado – no qual assegura o debate com elegância, de acordo com a grande arte de Bailly – apoderou-se de mim desde que eu recebi o pedido do artigo, e desde então não parei de admirá-la.
A “comunidade” era uma palavra então ignorada no discurso do pensamento. Ela deveria sem dúvida estar reservada ao uso institucional da “comunidade européia”, uso o qual nós sabemos hoje, quase vinte anos mais tarde, deixa em suspenso o conceito que ela emprega: isso também não é estranho a questão da “comunidade” tal como ela nos assombra, tal como ela nos abandona ou tal como ela nos alcança. Que se a soubera ou não, a palavra e seu conceito só poderiam passar pela armadilha da Volksgemeinschaft nazista, “comunidade do povo” no sentido que a conhecemos. (Na Alemanha, aliás, a palavra Gemeinschaft provocava ainda um forte reflexo de hostilidade de esquerda, e a tradução de meu livro, em 1988, fui chamado de nazista em um jornal de esquerda de Berlim. Em 1999, em revanche, outro jornal de Berlim, proveniente do ex-Estado, falava do mesmo livro de maneira positiva com o título “Retorno do comunismo”. O duplo sentido desta história me parece resumir bem a ambiguidade, o equívoco e talvez o paradoxo, mas também a insistência obstinada, não necessariamente obcecada, que leva com ela a palavra “comunidade”.) Por outro lado, o que restava ainda em 1983 da confiança socializável, de qualquer grau ou qualquer forma que fosse, guardava sua inclinação pela palavra “comunismo” (ao menos, isto se entende, com a condição de readquirir a exigência primeira contra o “real comunismo” que não se estava mais para descobrir).
Ora, o “comunismo” indica uma idéia e um projeto, enquanto a “comunidade” parece notar um fato, um dado. O “comunismo” se declara a favor de uma “comunidade” que não é dada, trata-se de um objetivo.
Do discurso de Bailly, eu imediatamente analisei: “O que é o comunismo na comunidade?”; “Qual o projeto comunista, comunitário ou comunial?”; “O que é ele?”; até mesmo, “Qual é o seu ser, qual a sua ontologia, levando em consideração que isto indica uma palavra bem conhecida – comum – mas o conceito, talvez, se tornou muito incerto?”.
O conceito sozinho requeria um estudo, e o convite já manifestava uma reserva com relação à ordem do mesmo projeto no geral. (Bailly vinha de uma esquerda inclinada, senão ao extremo, ao não comunismo no sentido de partidos.) A única evidência da palavra a colocaria em um programa de análise e sem dúvida de problematização.
O “número” lhe era também inesperado, de outro modo. Ele lembrava de repente a evidência, não somente da multiplicação considerável da população mundial, mas com ela - como seu efeito ou como sua corroboração qualitativa – de uma multiplicidade se subtraindo às assunções unitárias, de uma multiplicidade que reduz suas diferenças, se dispersa em pequenos grupos, e até mesmo, em indivíduos, em multidões ou em povos. Deste lado, o “número” significava a continuação e a substituição do que fora “a massa” ou “a loucura” nas análises antes da guerra (Le Bom, Freud, etc.). Ora, nós sabíamos como foram as operações conduzidas sobre as “massas” pelos fascistas, tanto que os comunistas foram sobre as únicas “classes” destinadas a uma missão histórica.
A declaração seria então como um resumo vívido do problema que herdamos como do ou dos “totalitarismo(s)”- não diretamente representada em termos políticos (como se tratava de um problema de “bom governo”), mas em termos que deveriam se compreender como ontológicos: o que é então a comunidade se o número torna-se o fenômeno único - ou a coisa em si - e se mais nenhum "comunismo" nem "socialismo", nacional ou internacional, não suporta mais a menor figura, nem a menor forma, o menor esquema identificável? E o que é então o número se a sua multiplicidade já não vale como massa à espera de um formato? (formação, conformação, informação), mas vale em suma para ele mesmo, em uma dispersão do qual não saberia a necessidade de nomeá-la disseminação (exuberância seminal) ou dispersão (pulverização estéril)?
Ora, acontece que, quando Bailly propôs este tema, eu estava no final de um ano letivo dedicado à Bataille examinado sob ponto de vista da política. Eu já havia pesquisado, muito precisamente, a possibilidade de um estudo inédito escapando do fascismo e do comunismo, outro tanto que ao individualismo democrata ou republicano (nem mesmo a noção "cidadão", que, desde então, procurou responder ao mesmo problema, mas dificilmente o fez avançar). Em verdade, eu procurava em Bataille, porque eu sabia que já circulavam a palavra e o tema da comunidade - o motivo desta pesquisa, que era também aquela do enunciado de Bailly (que, obviamente, conhecia Bataille sem portanto referir-se a ele). Este índice de pesquisa significava certamente, tanto para a um como para o outro, mas sem uma clara percepção do desafio, uma posição à principio indiretamente ou não exclusivamente política do problema: na frente ou por trás do “político[4]” havia isto, que há do “comum”, do “todos” e do “numeroso”, e que nós sabíamos talvez mais do que tudo como pensar esta ordem do real.
O trabalho do curso me deixou insatisfeito. Bataille não tinha me dado a oportunidade de chegar à uma política inédita. Em vez disso, ele tinha mais de um olhar relegado quanto a possibilidade política como tal. Em seus escritos pós-guerra, e até o fim, ele distanciara o seu pensamento do clima político antes da guerra. Da mesma forma, ele se distanciara de toda rivalidade com uma “ciência” sociológica, bem como, de toda tentativa de fundação de um grupo ou “colgiado”. Não era mais uma questão de “sociologia sagrada” desse novamente aos facistas a energia pulsante e “ativista” no qual vira jogar sua mola principal. A agitação heterológico havia fracassado e que a guerra terminou com a vitória das democracias, em vez de se fazer esforços e atualizar as forças estáticas, deixava no escuro os projetos políticos.
Da mesma forma, então, que Bataille fazia da “soberania” um conceito não-político, mas ontológico e estético - ética, pode-se dizer hoje - ele vinha a considerá-lo o forte vínculo (passional ou sagrado, íntimo) da comunidade reservada ao que ele chamou de a “comunidade de amantes”. Este vinha então em contraste com o vínculo social e como a sua contra-verdade. O que seria suposto dedicar-se a estruturar a sociedade - ainda que fosse uma violação transgressora – depositara fora dela mesma, em uma intimidade pela a qual a política permanecia sem apoio.
Ele me parecia reconhecer este aspecto da publicação que na época começava a obscurecer: a dissociação da política e do ser-em-comum[5].
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